Associação Portuguesa A "BATALHA" como forma organística
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Jorge Alves Barbosa

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Jorge Alves Barbosa


   É muito frequente ouvir-se falar, entre nós, da “Batalha” como uma forma musical típica do repertório organístico ibérico, se não mesmo como uma forma tipicamente portuguesa. Ora, se é um facto que a Batalha encontra um eco especial no repertório musical ibérico e possuímos, no português, alguns exemplos marcantes desse género musical, não poderemos esquecer que se trata de algo mais vasto quer geográfica, quer histórica, quer mesmo estilisticamente falando.

      A Batalha está inserida no mais vasto âmbito da música descritiva renascentista, uma música que encontra a sua expressão mais marcante na “chanson” francesa e particularmente na obra de Clement Jannequin. Efectivamente era com este autor que a "chanson" descritiva atingia o ponto culminante, ao ponto de a podermos considerar um autêntico "fresco descritivo", em dimensões quase precursoras do poema sinfónico. O seu estilo imitativo e descritivo, onde pontificam as onomatopeias e a utilização de aliterações e vocábulos de grande musicalidade, conduz-nos a um género de música quase em "orquestração coral" onde o aspecto executivo tem uma componente importante com os jogos de palavras as “réplicas” e despiques entre os diversos cantores, as onomatopeias, a imitação de pássaros e outras sonoridades selvagens, a repentina passagem da narração à evocação do gesto. Tudo isso representa um apurado sentido de humor muito difícil de ultrapassar. [1]

            É neste contexto que surge a Batalha como forma vocal instrumental capaz de provocar no ouvinte as sensações provenientes de um combate. Já no séc. XV, por volta de 1460, surge o primeiro exemplo na obra “Alla bataglia” de Heinrich Isaac; temos depois a canção “La Guerre” também conhecida como “Bataille de Marignan” do compositor francês Clement Jannequin (1515) e outras como “La bataille” sobre a guerra de Pavia, “La prise de Boulogne”, etc. onde se desenvolvem particularmente as onomatopeias para imitar “o clangor das trombetas de  guerra, a movimentação das tropas, o choque no fragor da batalha e mesmo a fuga dos vencidos”. Foi tal o impacto dessas canções, nomeadamente “La Guerre”, que se chegaram a compor missas sobre o tema, de que é exemplo paradigmático a “Missa super la Bataille” do próprio Jannequin, ou então obras de Morales e de Tomás Luís de Vitoria, facto que levou os responsáveis da igreja do tempo a tomar uma posição de denúncia. [2] Este género musical haveria de transpor as fronteiras de França com “Die Schlacht von Pavia” de H. Werrekpren (1544) e as “Bataglie” do veneziano Andrea Gabrielli, até chegarmos ao “Combattimento de Tancredo e Clorinda” de Cláudio Monteverdi, presente nos seus “Madrigali Guerrieri”.[3]

 

            Enquanto forma instrumental, nomeadamente para instrumentos de tecla (cravo e órgão), a Batalha fora já objecto do interesse de compositores como William Byrd com “The Battel”, para o virginal inglês, passando por quase todos os compositores de tecla do tempo como Frescobaldi,  Sweelinck, Kerll, e particularmente J. Kuhnau,  com as suas Sonatas Bíblicas, que incluem, logo na primeira, a “Batalha entre David e Golias”; particularmente interessante se torna o conjunto de indicações fornecidas pelo compositor Santino Garsi numa das suas obras, onde propõe várias imitações, desde os “tamburi per l’ordinanza” ao “invito alle trombe”, às “trombe per innanimire le scaramuzzanti” ou “tamburo per la ritirata”, num esquema que poderá corresponder em grande parte à estrutura evidenciada pela forma da “Batalha” como veremos adiante.

            A Batalha, enquanto elemento do repertório organístico ibérico, não se pode, por isso, dissociar do contexto mais generalizado que acabamos de assinalar, e a presença da influência francesa é por vezes surpreendente; a Batalha não se limita a utilizar os recursos do órgão para reproduzir os efeitos descritivos das canções, mas implica mesmo o desenvolvimento de algumas das características principais dos órgãos ibéricos como, por exemplo, a colocação da trombetaria na posição horizontal, por isso apelidada de trombetas “en chamade” expressão francesa que evoca precisamente a sonoridade e a posição das trombetas de guerra. [4] Além disso, os próprios efeitos que encontramos  evocados quer pelos textos e músicas das canções de guerra quer pelas já assinaladas indicações de compositores fazem desenvolver toda uma panóplia de adereços nos próprios órgãos que vão desde a profusão de trombetas de batalha, clarins de batalha, trombetas magnas e outros registos de palhetaria, aos tambores, maracas, carrancas, guizos, cascavéis e outros adereços ruidosos, até aos efeitos visuais como anjos que erguem desafiadores as suas trombetas guerreiras e outros elementos da ornamentação dos instrumentos. [5]

            Como é que este descritivismo e a utilização de tantos elementos profanos e estranhos à própria especificidade da música organística conseguiram entrar nos templos, de modo a se tornarem uma das mais populares expressões do repertório organístico ibérico? Duas razões se poderiam apontar: em primeiro lugar o sentido alegórico das batalhas terrenas que se transfiguraram depressa em imagens da batalha sobrenatural entre o bem e o mal, entre o Arcanjo Miguel e Lúcifer, entre a mulher e a serpente, entre David e Golias – presente nas Sonatas Bíblicas de Kuhnau - entre S. Jorge e o Dragão, entre mouros e cristãos; ou seja, mais uma das concretizações da eterna batalha entre o bem e o mal inerente à vida humana, presente na Sagrada Escritura, do Génesis ao Apocalipse, tal como na própria cultura popular, batalha bem expressa na célebre frase de Job: “Mas não é um permanente combate a vida do homem sobre a terra?” (Job 7,1). Em segundo lugar, trata-se de um exemplo da permanente invasão da profanidade nos domínios da música e do espaço sagrado, invasão que vai ganhando formas diferentes conforme os tempos, e que, no período renascentista, era mais frequente porque as fronteiras entre o sacro e o profano na música não estavam tão definidas como  nos tempos de hoje. Isto acontecia particularmente devido ao facto de os compositores serem os mesmos para uma e outra música e de as conotações e semântica da música instrumental não serem tão claras como haveria de acontecer depois, no séc. XVIII, com o movimento do “Empfindsamerstill”. Esta invasão dos elementos profanos no culto não se limitava à música instrumental; efectivamente, na música vocal acontecia o mesmo, [6] ao ponto de encontrarmos diversas intervenções dos responsáveis da Igreja no sentido de evitar a utilização destes elementos. Concretamente, a respeito deste género musical que nos ocupa, poderíamos citar alguns exemplos. No Concílio Plenário Bracarense, reunido sob a presidência e orientação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, para aplicação das orientações doutrinais do Concílio de Trento, dizia-se: “o Concílio proíbe em absoluto que algo se cante semelhante a cantigas profanas ou a tumultos bélicos ou a melodias cénicas e eróticas”, para adiante afirmar, relativamente à utilização do órgão, que “os músicos, nas suas execuções, não exprimam nos seus instrumentos sonoros e, a seu livre arbítrio, quaisquer cantigas profanas”. [7] A mesma ideia se encontra num documento do cónego Martin de Azpilcueta ao insurgir-se contra aquela tradição proveniente das Gálias e muito frequentemente acolhida na Espanha, de “procurar representar os tumultos da guerra com o som estridente dos tímpanos e das trombetas e todo o ambiente guerreiro”. [8] 

            Prescindimos, no âmbito reduzido deste artigo, de fazer qualquer elenco ou estudo sobre o repertório ibérico no que respeita a Batalhas, sobejamente conhecido dos organistas e dos melómanos da literatura organística ibérica, [9] bem como sobre os procedimentos estilísticos que as caracterizam, pelo que apresentaremos apenas alguns elementos acerca de uma estrutura que se foi afirmando com uma certa regularidade e que deverá ser tida em conta, sobretudo ao nível da sua articulação, registação, dinâmica e interpretação em geral. As Batalhas são, em grande medida, dependentes da obra vocal que lhes deu origem e o caso mais surpreendente é o da Batalha do 6.º Tom de Pedro de Araújo que, situando-se a meados ou mesmo de finais do séc. XVII, apresenta uma transcrição muito aproximada da Chanson “La Guerre” de Clement Jannequin, datada de 1515 e publicada em 1528 e 1555, o que denota a fama e longevidade desta obra. Normalmente, as Batalhas apresentam uma primeira parte que chamaríamos de “Exortação”, correspondente ao “Écoutez-vous, gentils gaulois” de “La Guerre” e que na Batalha de Pedro de Araújo preenche os c. 1-40; segue-se uma “apresentação dos exércitos” que poderíamos fazer corresponder à expressão “des coups de tous cotés” que preenche os c. 41-96, com todos os aspectos do soar das trombetas (acordes, saltos de quarta, o “concitato” ou notas rebatidas, etc.), o concertante (diálogo entre agudos e graves); depois vem uma parte central, mais “idílica”, normalmente em ritmo ternário e que poderá incluir a introdução de ornamentos suaves como os passarinhos, jorros de água ou guisos, que preenche os c. 97.-136; segue-se a batalha propriamente dita com o ritmo de tambores, os toques guerreiros, o desafio ao adversário, o choque das tropas, a fuga dos vencidos, correspondente aos c. 137-175; finalmente o “toque de vitória” e exultação final, c. 176-203, onde terá lugar a introdução de outros ornamentos, nomeadamente tambores e maracas, e tudo o que, segundo as possibilidades do órgão e o bom senso do organista se possa utilizar. Este esquema está presente, com pequenas variantes, em todas as Batalhas, podendo, em alguns dos casos, revelar outros recursos do compositor como o “fugato” no final da Batalha de 6.º tom de António Correia Braga. Outro aspecto a assinalar é o de a maioria das Batalhas se encontrar no 6.º tom com bemol, ou seja, muito próximo da tonalidade de Fá Maior, com aproveitamento das possibilidades do “plagal” que permite o desenvolvimento da obra no âmbito do intervalo Do3-Fá4. Algumas estão compostas no 5.º tom que utiliza o mesmo material de Fá, mas com base no intervalo Fá3-Dó5, mais difícil de conseguir nos teclados existentes e, por isso mesmo, transposto a Dó, com o intervalo Do3-Sol4, como se pode ver na Batalha de 5.º tom de Diego da Conceição.

            Transformadas hoje em dia em obras de exibição e de concerto, extraordinariamente popularizadas até pelas possibilidades reveladas pela edição discográfica,  objecto do interesse de organistas de todo o mundo como expressão privilegiada e acessível do repertório ibérico, as Batalhas poderão encontrar um lugar no contexto da liturgia, nomeadamente num final de celebração durante a retirada do povo; ao mesmo tempo constituem uma oportunidade para explorar as maiores capacidades dos órgãos mais recentes como apelo à criatividade e habilidade interpretativa, quer tirando partido de uma paleta tímbrica mais diversificada, quer na exploração de contrastes que é facultada pela existência de vários teclados. [10]


[1] Desenvolvi isto num pequeno artigo “A Canção Renascentista” com os respectivos exemplos do repertório.

 

[2]  Veja-se JORGE ALVES BARBOSA, “Frei Bartolomeu dos Mártires e a Música Sacra” in Cadernos Vianenses, n. 33 (2003) p. 59-86 e um resumo deste trabalho em Nova Revista de Música Sacra, n. 107.

 

[3]  É evidente que este interesse pelas batalhas e pelas guerras na música é muito vasto e chega a obras muito mais recentes e conhecidas como a Sinfonia Militar de Haydn ou a Batalha de Wellington de Beethoven, o Poema Sinfónico de Liszt “A Batalha dos Hunos” e a “Tomada de Moscovo” ou Abertura 1812 de Tschaikovsky, a Sinfonia Leninegrado de Shostakovich, para não falarmos da presença deste tema no campo da ópera, desde a Sinfonia de Guerra no Ritorno di Ulisse de Monteverdi  ao Rienzi de Wagner.

 

[4] “Chamades são os jogos de palhetas dispostos horizontalmente na direcção da nave e sob a fachada, na dianteira da caixa do órgão, ao pé dos tubos dos Principais. Característica dos organeiros espanhóis dos séculos XVII e XVIII, a disposição “en chamade” é utilizada habitualmente pelos organeiros de hoje” (PIERRE ROCHAS, Dictionaire de l’Orgue, p. 28).

 

[5] Cfr. JESUS ANGEL DE LA LAMA, El Organo barroco español, Valladolid, 1995, Tomo III, p. 721-784, com uma descrição de cada um destes registos e sua contextualização tanto na organaria como no repertório.

 

[6] Isto não só pelo facto de se utilizarem temas profanos na música sacra por meio do “cantus firmus” e particularmente nas chamadas “Missa canção”, mas também porque o próprio Villancico, forma vocal muito popular na época e nos nossos meios ibéricos, era também uma mistura de sacro e profano quer pelos temas abordados, quer pelos textos onde se misturava o latim (sacro) com o vernáculo (profano) quer ainda pela música e pelo contexto em que se executavam que foi passando progressivamente do exterior para o interior dos templos, inserindo-se inclusivamente na própria liturgia.

 

[7] CONCÍLIO PLENÁRIO BRACARENSE, Sessão V, cap, 22-24. Cfr. A. BARBOSA, art. cit. p. 82.

 

[8] Texto transcrito, entre outros, em GERHARD DODERER, Orgelkunst und Orgelbau in Portugal des 17. Jahrhunderts, Verlegt bei Hans Schneider, Tutzing, 1978, p. 183, notas 14 -16. Aliás, esta obra, Tese de Doutoramento do Autor, apresenta um aprofundado e quase exaustivo estudo sobra a Batalha nos diferentes aspectos que a envolvem, bem como uma lista das obras que representam esta forma musical no repertório ibérico.

 

[9] O trabalho citado na nota anterior apresenta um elenco de 18 obras conhecidas (p. 198-199). Para além de muito deste repertório estar publicado existem já bastantes gravações discográficas das Batalhas mais importantes, de que se poderia destacar, sobretudo pela abrangência, o disco de Joaquim Simões da Hora intitulado “Batalhas & Meios Registos” (Movieplay) que inclui cinco das mais conhecidas.

 

[10] Pessoalmente, entre muitas interpretações que conheço da Batalha de 6.º Tom de Pedro de Araújo, a mais conseguida é a realizada por Arsène Bedois no grande órgão da Igreja de S. Tomás de Aquino, em Paris (ed. Arion).


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