SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO - "CONCERTOS NAS IGREJAS"

- COM COMENTÁRIO DE JORGE ALVES BARBOSA -


O presente documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino apresenta um conjunto de elementos teóricos de carácter teológico, litúrgico e jurídico, mas não de carácter musical, que possam fundamentar algumas orientações pastorais no que concerne à utilização de espaços sagrados para realizações de âmbito musical, ou mais concretamente, sobre a problemática dos "concertos nas igrejas" que dá título ao documento. O facto de o documento não vir definido é, de si, revelador de uma certa indefinição no problema e nos autores do documento: não é um Decreto, não é uma Instrução, e quando apresenta algumas orientações não lhes chama regras, normas, nem sequer orientações, mas apenas "disposições práticas", apenas com o intuito de "ajudar os Bispos", deixando a estes a carga da responsabilidade de agir e se defender nas situações mais complicadas. O facto de ser publicado em francês leva a entender que tem a situação particular da França como pano de fundo. Não me consta que tenha havido entretanto mais qualquer tipo de orientação ou tomada de posição, nem mesmo que alguém tenha procurado estudar e fornecer elementos que permitam estabelecer um conjunto de critérios de avaliação do repertório a utilizar, que era o que se precisava. Ao restringir o repertório à música sacra ou à música religiosa que muitas vezes confunde, evita a verdadeira questão que se nos coloca na prática porque, assim sendo, o estilo de música a admitir já está claramente definido e o resto fica de fora.

I - A MÚSICA NAS IGREJAS,

FORA DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS

1. O interesse pela música é uma das manifestações da cultura contemporânea. A facilidade de podermos escutar em casa as obras clássicas, graças à rádio, aos discos, às cassetes, à televisão, não diminuiu de modo nenhum o prazer da assistência a um concerto ao vivo e acabou mesmo por aumentá-la. Trata-se aqui de um fenómeno positivo, porque a música e o canto contribuem para a elevação do espírito.

O aumento do número de concertos levou, recentemente, em muitos países, a uma utilização frequente das igrejas para a sua realização. As razões invocadas para tal são variadas: necessidade de ambiente, porque não é fácil encontrar lugares apropriados; razões de ordem acústica: as igrejas oferecem geralmente boas garantias a este respeito; razões estéticas: no desejo de que o concerto seja realizado num ambiente de beleza; razões de conveniência: para restituir às composições executadas o seu próprio ambiente de criação; mas também razões simplesmente práticas, sobretudo para os concertos de órgão: é que as igrejas, geralmente, dispõem dos referidos instrumentos.

Como se pode ver desde o início, trata-se de uma tomada de posição sobre a "música nas igrejas, fora das celebrações litúrgicas" com uma introdução no n.º1 que assinala, desde logo, o crescente interesse pelas execuções musicais "ao vivo", apesar da divulgação actual dos aparelhos de gravação e reprodução sonora que não só não reduziu, mas fez inclusivamente aumentar o interesse pelas mesmas; tal tendência vem a acentuar-se nestes quinze anos subsequentes. Repare-se que, desde a sua publicação, já surgiram o CD e o DVD e o "mini-disc" para não falar da divulgação musical na Net, e têm-se valorizado consideravelmente não só as execuções ou concertos ao vivo, mas também as gravações ao vivo sem grandes recursos técnicos ou "unplugged". Este interesse positivo pelos concertos e por uma certa "verdade" da música levou a um aumento da requisição das igrejas para esse efeito e isto por variadas razões:

  • a) razões acústicas e de ambiente favorável à escuta como o caso excepcional de alguns templos da cidade de Viana desde a amplitude da igreja de S. Domingos á fidelidade acústica da igreja da Misericórdia.

    b) razões estéticas: interligação das artes como música, arquitectura, escultura, talha, iconografia, e mesmo encenação; (recordo o projecto dos "Sons da História" como exemplo entre nós)

    c) razões históricas: corresponder ao ambiente e espaço real para o qual foi criada a música, até porque grande parte do repertório de concerto é de carácter sacro ou pelo menos religioso e tem, muitas vezes, em conta as características da própria igreja (caso da Música de Gabrielli para S. Marcos em Veneza ou a de Bach para S. Tomás de Leipzig) e relativamente à música de órgão, não só ela nasceu no contexto da igreja e da liturgia, mas os próprios órgãos ainda se encontram predominantemente nas igrejas...

    d) razões litúrgicas (n. 2) porque muito do repertório tradicional das "Scholae Cantorum" e da música litúrgica histórica não cabe agora no contexto das celebrações litúrgicas. Aqui surge uma questão que me foi apontada pelo Dr. Bonifácio Baroffio do PIMS de Roma sobre o facto de este documento pretender, de forma velada, relegar para o campo da música de concerto muito do repertório sacro tradicional das grandes capelas musicais e mesmo do canto gregoriano, contrariando claramente o espírito e a letra do Concílio Vaticano II na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (nn. 114 a 116) e a Instr. "Musicam Sacram" (n.º 4, al. b) e n.º 20). A mesma ideia vem a ser repisada adiante no n. 6, ao apresentar os concertos como "compensação" para a impossibilidade de exibir na liturgia obras do grande repertório, e no n.º 11 ao falar do contributo que as "scholae" podem dar para a "preservação do tesouro musical sacro".

  • 2. Paralelamente a este processo cultural, constata-se na igreja uma nova situação: as "scholae cantorum" por um variado número de razões, deixaram de ter oportunidade de executar o seu repertório habitual de música sacra polifónica no contexto das celebrações litúrgicas. Por esta mesma razão tomaram a iniciativa de executar esta música sacra no interior das igrejas, sob a forma de concerto. O mesmo acabou por acontecer com o canto gregoriano que entrou na elaboração de programas de concerto tanto no interior como fora das igrejas.

    Outro facto importante é constituído pela iniciativa dos "concertos espirituais" assim designados porque a música executada pode ser considerada como música religiosa em virtude do tema tratado, do texto que as melodias revestem, do clima no qual as execuções são realizadas. Em certos casos, estes concertos podem incluir leituras, orações ou momentos de silêncio. Em razão da forma que os caracteriza, tais concertos podem ser mesmo designados como "pia exercitia".

    É vivamente aconselhada, então , a realização de "concertos espirituais" que, com a utilização criteriosa de textos e de melodias e mesmo de música instrumental, podem constituir-se até como uma espécie de "pium exercitium" ou acto devocional, celebrativo ou para-litúrgico. Trata-se de uma eficaz experiência e eu próprio organizei muitos desses concertos corais e instrumentais e participei em muitos outros na minha estadia em Roma, pois os nossos concertos eram quase todos orientados por este mesmo critério. Posso mesmo dizer que a maior parte dos concertos que faço, mesmo os de órgão a solo, têm esse princípio como base de organização do programa. Como exemplos mais marcantes poderia citar o Concerto sobre "O mistério Pascal na música de órgão" em Semana Santa e vários concertos de Natal e Páscoa como foi particularmente o concerto de encerramento do Ano Jubilar na Sé de Viana do Castelo, com a referida introdução de textos de ligação. Isto implica que se deve mesmo levar as organizações e instituições culturais a procurar uma adequação dos programas de concerto ao ambiente e ao espaço sagrado e mesmo aos tempos litúrgicos ou, eventualmente, ao próprio dia litúrgico se é o caso. Não se entende por exemplo que se faça um concerto - como se tem feito e aprovado entre nós - em tempo de Paixão com música de Natal... nem faria muito sentido apresentar um "Stabat Mater" no tempo de Natal ou mesmo fora do tempo de Quaresma.

    3. Este progressivo acolhimento dos concertos nas igrejas suscitou entre os párocos e reitores das mesmas algumas interrogações às quais convém responder. Se uma abertura generalizada das igrejas a todo o género de concertos provoca reacções e protestos por parte de muitos fiéis, uma recusa não fundamentada corre igualmente o risco de ser mal compreendida e aceite pelos organizadores de concertos, pelos músicos e pelos cantores. Antes de mais é importante que nos atenhamos à própria significação das igrejas e à sua finalidade.

    Para isso a Congregação para o Culto Divino julga oportuno propor às Conferências Episcopais e, segundo a sua competência, às Comissões Nacionais de Liturgia e de Música Sacra alguns elementos de reflexão e de interpretação das normas canónicas concernentes ao uso dos diversos géneros de música nas igrejas: música e canto para a liturgia, música de inspiração religiosa e música não religiosa,

    O n. 3 aponta para o risco de um confronto de reacções da parte dos párocos, reitores e fiéis que não querem ver as suas igrejas transformadas em auditórios ou salas de concerto, e da parte das entidades culturais que não compreendem a eventual recusa de cedência das mesmas igrejas dada a sua importância; apela-se ao facto de o espaço sacro ser essencialmente cultual, e todos sabemos até das interferências do próprio Estado, através dos seus organismos, nomeadamente o IPPAR, a esse respeito; o caso francês é, ao que parece, mais sério porque as igrejas, sendo monumentos do Estado, são muitas vezes requisitadas para toda a espécie de reuniões e espectáculos, mesmo de dança. Ao mesmo tempo encontramos aí outro problema que é o de concertos nas igrejas com entradas pagas, o que sempre foi proibido pela Igreja. É no sentido de dar apoio e proporcionar mesmo uma certa defesa aos bispos e reitores das igrejas, que são postas à disposição estas "orientações" referentes a execuções musicais extra-litúrgicas, mas oferece-se apenas como fundamento os documentos que tratam expressamente da música litúrgica, e que não abordam este assunto em concreto.

    Este n. 3 coloca um problema sério que vem surgindo, por vezes, também nos nossos meios: "as igrejas não podem ser consideradas como simples lugares públicos, disponíveis para reuniões de todo o género; são lugares "sagrados" isto é "colocados à parte" para o culto. Este princípio desenvolvido adiante, nos nn. 5 e 6, entra em conflito com as ideias de muitas instituições ligadas à cultura e aí coloco muitas das nossas - Escolas, Academias, Câmaras, Centros Culturais, etc. - que julgam possuir e defendem o direito a utilizar estes espaços invocando são "do povo"... Eu mesmo tive de enfrentar situações muito sérias a este respeito e até assisti ao espectáculo de gente aos berros, na Igreja da Misericórdia de Viana, a aplaudir uma canção de carácter revolucionário e depois, como brinde de agradecimento deste aplauso a célebre canção, pelo contexto, "Grândola"... Este assunto voltará a ser abordado no n.º 8. A conservação do espaço sagrado na sua identidade e recato servirá ainda assim como antídoto ao barulho das nossas cidades refere o documento.

    4. É necessário reler, no contexto actual, os documentos já publicados, nomeadamente a Constituição "Sacrosanctum Concilium" sobre a sagrada liturgia, a Instrução "Musicam Sacram" de 5 de Março de 1967, a Instrução "Liturgicae Instaurationes" de 5 de Setembro de 1970 bem como os can. 1210, 1213 e 1222 do Código de Direito Canónico.

    O can. 1210 do C.I.C. refere-se simplesmente à utilização cultual do espaço sagrado, podendo o Ordinário do lugar permitir "acidentalmente" ("per modum actus") outros usos que não sejam contrários à santidade do lugar. Os outros cânones citados referem-se a aspectos secundários neste contexto: a autoridade da Igreja sobre os lugares e a redução definitiva dos mesmos a uso profano.

    II - ELEMENTOS DE REFLEXÃO

    Natureza e finalidade das igrejas

    5. Segundo a tradição ilustrada pelo ritual da dedicação da igreja e do altar, as igrejas são lugares onde se reúne o Povo de Deus. Este, "congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo constitui a Igreja, templo de Deus, edificada com pedras vivas na qual o Pai é adorado em espírito e verdade. A justo título, desde a antiguidade, o nome de igreja se foi estendendo ao edifício no qual a comunidade cristã se reúne para escutar a palavra de Deus, rezar em comum, receber os sacramentos, celebrar a Eucaristia, e adora-la neste lugar como sacramento permanente" (cfr. Ritual da Dedicação da Igreja e do Altar, cap. II, 1).

    As Igrejas não podem, portanto, ser consideradas como simples lugares públicos disponíveis para reuniões de todo o género. São lugares sagrados, quer dizer, "colocados à parte" de maneira permanente, para o culto prestado a Deus, pela consagração ou bênção. Como edifícios visíveis, as igrejas são sinais da Igreja peregrina sobre a terra; imagens que anunciam a Jerusalém celeste; lugares nos quais se actualiza desde cá de baixo o mistério da comunhão entre Deus e os homens. Nas aglomerações urbanas e rurais, a igreja é ainda a casa de Deus, quer dizer o sinal da sua morada entre os homens. Ela permanece portanto como lugar sagrado mesmo fora das celebrações litúrgicas.

    Numa sociedade marcada pela agitação e pelo ruído, particularmente nas grandes cidades, as igrejas são lugares propícios onde os homens podem encontrar, no silêncio ou na oração, a paz de espírito ou a luz da fé. Isto não será possível senão se as igrejas conservarem a sua própria identidade. Quando forem utilizadas para fins diferentes daquele que lhes é próprio, a sua característica de sinal do mistério cristão é posta em perigo com danos mais ou menos graves para a pedagogia da fé e o sentido do povo de Deus, tal como nos recorda a palavra do Senhor: "A minha casa será casa de oração" (Lc 19, 46).

    Importância da Música Sacra

    6. A música sacra, tanto vocal como instrumental, merece uma atenção positiva. Por esta denominação entendemos aqui "aquela que, composta para a celebração do culto divino, é dotada de santidade e de perfeição de forma" (Instr. "Musicam Sacram" n, 4). A Igreja considera-a como "um tesouro de valor inestimável que a eleva acima das outras artes", reconhecendo-lhe "uma função ministerial no serviço divino" (Const. "Sacrosanctum Concilium", n. 112); ela recomenda que "este tesouro seja conservado e cultivado com a maior solicitude" (Const. "Sacrosanctum Concilium", n. 114).

    Quando a execução da música sacra se realiza durante uma celebração, ela deve conformar-se ao ritmo e às modalidades próprias daquela. Esta disposição obriga, muito frequentemente, a limitar o uso de obras criadas numa época em que a participação activa dos fiéis não era proposta como fonte do verdadeiro espírito cristão (cfr. Const. "Sacrosanctum Concilium", n. 14 e Pio X, Motu Proprio "Tra le sollecitudini"). Esta mudança nas execução de obras musicais é análoga à realizada por outras criações artísticas no campo litúrgico por razões de celebração: por exemplo os santuários foram reestruturados no que diz respeito à colocação da cadeira presidencial, do ambão, do altar voltado para o povo. Tal não significa de modo nenhum o desprezo pelo passado, mas foi querido em virtude de um fim mais importante como é a participação da assembleia. A eventual limitação que pode surgir na utilização de obras musicais no decurso da liturgia pode ser compensada pela apresentação integral que delas pode ser feito fora das celebrações, sob a forma de concerto de música sacra.

    O Órgão

    7. O uso do órgão durante as celebrações litúrgicas limita-se, hoje em dia, a algumas intervenções. No passado, o órgão substituía a participação activa dos fiéis e envolvia a assistência daqueles que "se mantinham espectadores mudos e inertes" da celebração (Pio XI, Const. "Divini Cultus", n. 9). O órgão pode acompanhar e sustentar, durante as celebrações, os cânticos sacros da assembleia ou do coro. Mas o som do órgão não deve sobrepor-se às orações ou aos cantos executados pelo sacerdote celebrante, nem às leituras proclamadas pelo leitor ou diácono.

    O silêncio do órgão deverá ser mantido, segundo a tradição, igualmente nos tempo penitenciais (Quaresma e Semana Santa), durante o Advento e na liturgia de defuntos. Nestas circunstâncias, o som do órgão é unicamente permitido para acompanhar o canto. É bom que o órgão seja utilizado mesmo longamente para preparar e para concluir as celebrações. É muito importante que em todas as igrejas, mas especialmente nas mais importantes, não faltem os músicos competentes e instrumentos musicais de qualidade. Ter-se-á um particular cuidado com os órgãos antigos sempre preciosos pelas suas características.

    Os nn. 5 a 7 falam da importância das igrejas como espaços sagrados, da música sacra e da música de órgão e respectiva execução, no contexto das celebrações litúrgicas, o que, podemos notar, não tem muito a ver com o objectivo primário do documento. Mais uma vez se nota uma certa incoerência e descontextualização das afirmações deste documento, e volta-se a evidenciar uma certa confusão entre música litúrgica e música sacra agora "transformada" simplesmente em música de concerto. Ao mesmo tempo é notória a questão de se considerar a execução, em concerto, da música sacra como compensação para o facto de o grande repertório ter sido excluído das celebrações litúrgicas por obstar à participação dos fiéis nas celebrações.

    III - DISPOSIÇÕES PRÁTICAS

    8. A regulamentação do uso das igrejas é determinada pelo can. 1210 do Código de Direito Canónico: "não será admitido num espaço sagrado senão aquilo que serve o culto, a piedade ou a religião e será aí proibido tudo aquilo que não convém à santidade do lugar. Entretanto, o Ordinário pode permitir ocasionalmente outros usos que não sejam contudo contrários à santidade do lugar".

    O princípio segundo o qual a utilização das igrejas não deve ser contrária à santidade do lugar determina o critério segundo o qual convém abrir as portas das igreja a um concerto de música sacra ou religiosa e fechá-las a todas as outras espécies de música. A mais bela música sinfónica, por exemplo, não é em si religiosa. Esta qualificação deve resultar explicitamente do fim original das peças musicais ou cantos e do seu conteúdo.

    Não é legítimo programar numa igreja a execução de uma música que não é de inspiração religiosa e que foi composta para ser executada em precisos contextos profanos, seja ela clássica, contemporânea, erudita ou popular: tal não respeitaria nem o carácter sagrado da igreja, nem mesmo a própria obra musical pois não seria executada no sem ambiente natural. Compete à autoridade eclesiástica exercer livremente os seus poderes nos lugares sagrados (cfr. Can. 1213) e portanto regulamentar a utilização das igrejas fazendo respeitar o seu carácter sagrado.

    No capítulo das "disposições práticas", neste número 8, aparece a afirmação mais importante e ao mesmo tempo claramente redutora de "abrir os espaços sagrados a concertos de música sacra ou religiosa e fechá-los a toda e qualquer outra espécie de música". Sobre o carácter religioso ou profano da música "sinfónica" poderíamos escrever todo um tratado; parece-me demasiado redutora uma afirmação destas porque que vem a proibir praticamente todos os concertos que se realizam nas igrejas. Foi por isso mesmo que, no nosso caso, abrimos, então, a porta a manifestações que, pelo menos, não desdigam da santidade do lugar.

    Compete precisamente ao perito em música avaliar, para além de muitos outros aspectos não tanto técnicos, o estilo, o género, o carácter ou o "ethos" da música a executar. Nesse sentido, e, em linhas gerais, eu apontaria alguns critérios que costumo levar em conta:

    Para a música vocal é preciso ver o texto e a música das obras, que devem ser desprovidos de qualquer tipo de significação, de conotação ou mesmo insinuação inconveniente ou mesmo duvidosa no seu conteúdo; poderão, por isso, ser admitidas obras corais, corais-sinfónicas ou Lieder (espécie de canção para voz e instrumento) que no texto não apelam nem referem sensações, ideias ou pensamentos incompatíveis com o lugar sagrado, ainda que não sejam de índole estritamente religiosa. A possibilidade de o público perceber ou não a língua em que se canta também é importante, sendo que se deve partir do facto de que entende, pois, caso contrário não aprecia devidamente o concerto e a mensagem que ele pretende comunicar. Penso que é de rejeitar a ideia de que "as pessoas não entendem e por isso pode-se fazer"...

    No caso particular da música puramente instrumental aceita-se uma música capaz de provocar apenas uma reacção ou resposta de carácter estético e que, de preferência, inspire uma elevação espiritual; trata-se daquela música habitualmente apelidada de "música pura", que se aprecia em função da forma, como seja uma sonata para piano, um quarteto, uma sinfonia ou concerto ou mesmo certos poemas sinfónicos, etc. O mesmo não se pode dizer de uma música que evoque um ambiente de dança como seria uma "suite" (a não ser que se trate de música antiga que perdeu já esse carácter) uma "rapsódia" a não ser que descontextualizada do ambiente de origem (como as "rapsódias húngaras" de Liszt, ou a "Rapsody in Blue" de Gershwin), ou uma "valsa" ainda que fora de Viena... É de evitar toda aquela música mais expressiva que, sendo apenas instrumental, pode estar ligada a textos ou contextos evocativos de ambientes marcadamente profanos como por exemplo alguns trechos de ópera, ainda que instrumentais, mas que evocam cenas violentas, sensuais ou eróticas. É importante ter em conta a conotação ligada a certas músicas, não derivada da sua composição ou contexto em que originalmente se inserem, mas uma conotação que deriva de um uso diferente como a ligação à publicidade, a determinadas imagens ou a mensagens televisivas. Por exemplo, ao ouvir as "Quatro Estações" de Vivaldi evocar uma marca de sanitas... ao ouvir o Quinto Concerto para Violino de Mozart evocar uma marca de chocolates... ou ao ouvir a famosíssima e tanto tocada na igreja "Ária da corda Sol" de Bach, evocar uma conhecida marca de wisky.

    É por isto mesmo que se afigura mais importante do que parece à primeira vista, a consulta de um verdadeiro perito em música; é que uma apurada sensibilidade e atenção aos fenómenos sócio-musicais, a audição e o conhecimento das obras, e a necessária análise das partituras quando não há possibilidade de acesso a uma gravação são condições importantes para uma avaliação e um parecer correcto e fundamentado, o que não está normalmente ao alcance dos responsáveis pela autorização.

    A posição da autoridade eclesiástica exerce-se - segundo o documento presente - particularmente no sentido de velar pela preservação da santidade do lugar e, portanto, da não utilização do mesmo para concertos de música profana pelo que, dada a diversidade de situações que podem afectar tal santidade, precisará forçosamente de ajuda.

    9. A música sacra, isto é, aquela que foi composta para a liturgia, mas que por razões actuais não pode ser executada durante uma celebração litúrgica, e a música religiosa, quer dizer, aquela que se inspira em textos da Sagrada Escritura, da Liturgia ou que está em relação com Deus, a Virgem Maria, os Santos ou a Igreja, podem ter o seu lugar na igreja, fora das celebrações litúrgicas. O toque do órgão ou outras execuções musicais, vocais ou instrumentais, podem "servir ou favorecer a piedade ou a religião" (cfr. Can. 1210). Elas têm uma utilidade particular:

  • a) para preparar as principais festas litúrgicas ou dar-lhes uma grande solenidade fora das celebrações específicas;
  • b) para acentuar o carácter particular dos diversos tempo litúrgicos

  • c) para criar nas igrejas um clima de beleza e de meditação que ajuda e promove, mesmo naqueles que estão afastados da igreja, uma predisposição para acolher os valores do espírito;

    d) para criar um contexto que torne mais fácil e acessível a proclamação da Palavra de Deus: por exemplo uma leitura contínua do Evangelho;

    e) para manter vivos os tesouros da música de igreja que não devem deixar-se perder: músicas e cantos compostos para a liturgia, mas que nem sempre nem facilmente podem entrar nas actuais celebrações litúrgicas: músicas espirituais como os Oratórios, as Cantatas Sacras que continuam a ser meios de comunicação espiritual.

    f) para ajudar os visitantes e turistas a melhor apreender o carácter sacro da igreja, por meio de concertos de órgão previstos para horas determinadas.

  • Este número aponta para o assunto já antes abordado de uma definição de música sacra e religiosa que, não podendo ser executada na liturgia pode favorecer a piedade dos fiéis. Aqui cabe então perguntar: porque é que tal música não pode mesmo integrar a liturgia, ainda que em momentos bem determinados e em função da dinâmica da própria celebração? Falamos de um motete, falamos de um excerto de cantata, falamos de uma peça de órgão, falamos de um Gradual gregoriano. Esta música era e continua a ser litúrgica e não precisamos de organizar concertos nas igrejas para "consolação" dos cantores e compositores. Se é um facto que muitos dos cantores, directores e compositores se sentiram um tanto frustrados pela prática "iconoclasta" derivada de uma deficiente aplicação da reforma conciliar que atirou para fora das celebrações muito do seu mérito e dos seu trabalho - recordo o drama, por exemplo, do Dr. Manuel Faria e de Mons. Domenico Bartolucci junto com tantos outros compositores, ou o facto de serem "expulsos" das igrejas tantos bons grupos corais - uma aplicação equilibrada e dentro do espírito da reforma litúrgica conciliar permite mesmo assim uma execução não só deste repertório, mas de muito do repertório a que chamamos clássico ou histórico.

    O mais curioso deste documento é que fala mais da utilidade da música religiosa que da questão dos concertos nas igrejas, ou seja, parece que o problema não se centra na existência de concertos, mas na necessidade - bem museológica - de promover concertos para aproveitar a música religiosa pelos tantos e tão grandes benefícios que ela pode trazer e preservar bem assim o rico tesouro sacro-musical. Vejam-se, por exemplo, as alíneas a) a f) que apontam objectivos dos concertos nas igrejas que vão desde o ajudar à elevação dos fiéis para Deus até ajudar os turistas a apreender o carácter sacro do lugar que visitam; quer dizer, a música reduzida à dimensão de "música de fundo".

    10. Quando os organizadores pedem para utilizar uma igreja para a realização de um concerto, pertence ao Ordinário dar o seu aval à concessão "per modum actus". Isto deve ser entendido sempre como algo ocasional. Tal exclui, por conseguinte, uma concessão cumulativa, por exemplo no quadro de um festival ou de um ciclo de concertos. Se o Ordinário o considerasse necessário, poderia, nas condições previstas pelo Código de Direito Canónico, can. 1222, § 2, destinar uma igreja que não se utiliza já para o culto, como "auditório" para a execução de música sacra ou religiosa, ou mesmo para execuções musicais profanas, com a condição de que essas execuções não destoem da sacralidade do lugar. Nesta tarefa pastoral, o Ordinário encontrará ajuda e conselho, na Comissão Diocesana de Liturgia e Música Sacra. Para que a sacralidade das igrejas seja salvaguardada, observar-se-ão, relativamente às autorizações de concertos, as condições seguintes que o Ordinário poderá precisar:

  • a) dever-se-á, em tempo útil, apresentar um pedido por escrito ao Ordinário do lugar com a indicação da data do concerto, o horário e o programa contendo as obras e nome dos autores;

    b) depois de ter recebido a autorização do Ordinário, os párocos e reitores das igrejas poderão autorizar a utilização da sua igreja aos coros e orquestras que preencherão os requisitos adiante assinalados;

  • c) a entrada nas igrejas será sempre libre e gratuita

  • d) os executantes e ouvintes deverão manter uma postura e um comportamento convenientes ao carácter sagrado da igreja;

    e) Os músicos e cantores evitarão ocupar o santuário (capela mor); será reservado o maior respeito para com o altar, a cadeira presidencial e o ambão.

    f) Na medida do possível, o Santíssimo Sacramento será conservado numa capela anexa, ou noutro lugar seguro e digno (cfr. Can. 938, § 4);

    g) o concerto será apresentado e eventualmente acompanhado de comentários que não devem ser unicamente de ordem artística ou histórica, mas que favoreçam uma melhor compreensão e uma participação interior dos ouvintes.

    h) o organizador do concerto assumirá por escrito a responsabilidade civil, as despesas, a colocação do espaço em ordem e a reparação de eventuais danos.

  • Para além de apelar ao cumprimento do can. 1210, já acima comentado, acrescenta-se agora mais um aspecto que tem a ver com o contexto francês: o caso dos festivais centrados num único lugar e que o documento exclui pura e simplesmente. É evidente que não se trata, como no caso dos nossos "Sons da História", de um ciclo de concertos ou festival em diferentes lugares, o que não destoaria, pois se trata de concertos isolados, apenas com programação geral integrada, mas trata-se sim de tomar uma igreja para auditório de uma série de concertos durante uma semana ou uma quinzena, por exemplo. Ora a realização de dezenas de festivais desses é ainda vulgar em França e uma das maiores atracções do Verão nesse país, podendo-se apontar como um dos mais famosos o da abadia de Chaise-Dieu. Não me consta que se tenham interrompido esses festivais, pelo contrário, sei que se continuam a realizar porque vejo a publicidade dos mesmos e muitos desses festivais são mesmo organizados sob os auspícios de Abadias, de Cabidos ou de Associações de Amigos das Catedrais, como é o caso aqui bem perto da Catedral de Tuy.

    Depois de comentar o já citado can. 1222, diz o nosso documento que "em toda esta tarefa pastoral o Ordinário do lugar encontrará ajuda e conselho na Comissão Diocesana de Liturgia Música Sacra". É evidente que quando se fala de liturgia se pensa nos casos em que a liturgia e música se encontram no mesmo organismo e não em chegar ao ponto de - caso que vigorou entre nós - consultar o secretário da pastoral litúrgica como se ele fosse perito em música... Muito menos, alguém sem qualquer competência no assunto, se arvorar em perito em música e sem mais a autorizar ou não os concertos.

    Nas condições apontadas para a autorização de um concerto em espaço sacro - tendo sempre em conta que se trata, no contexto do documento, de concertos de música sacra ou de música religiosa - ressalta o facto confirmado na alínea c) da proibição de cobrar bilhetes, prática frequente em França e ainda actualmente aplicada aqui bem perto de nós, na Póvoa de Varzim, no quadro do Festival de Música desta cidade da Arquidiocese de Braga. Tive uma grande dificuldade há uns anos, em Viana, para convencer os responsáveis do "Cheur d' Enfants de Paris" de que não poderiam cobrar bilhetes na Igreja de S. Domingos. Como recurso, e dada a proibição nossa, optaram por fazer um "peditório" que não deve ter rendido quase nada, para além do ridículo que representou... O resto das condições apontadas no documento vai-se respeitando mais ou menos.

    11. As precedentes disposições práticas pretendem contribuir para ajudar os Bispos e os reitores de igrejas no esforço pastoral de que estão incumbidos no sentido de manter a todo o momento o carácter próprio das igrejas destinadas às celebrações, à oração e ao silêncio. Tais medidas não devem de modo nenhum ser consideradas como uma falta de interesse pela arte musical.

    O tesouro da música sacra permanece como um testemunho do modo como a fé cristã pode promover a cultura humana. Conferindo o seu verdadeiro valor à música sacra ou religiosa, os músicos cristãos e os membros das "Scholae cantorum" devem sentir-se encorajados a prosseguir esta tradição e a mantê-la viva ao serviço da fé, segundo o convite que lhes foi feito pelo Concílio Vaticano II na sua mensagem aos artistas: "Não recuseis colocar o vosso talento ao serviço da verdade divina. O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, põe alegria no coração dos homens. E isto pelas vossas mãos" (Concílio Vaticano II, "Mensagem aos Artistas, 8 de Dezembro de 1965)

    Roma, 5 de Novembro de 1987

    Paul Augustin, Card. Mayer

    Prefeito

    Virgílio Noé

    Secretário

    Esta conclusão é muito "eclesiástica": depois de tudo, volta a referir que tais medidas não podem ser consideradas como "falta de interesse pela arte musical" e reitera a ideia de que "o tesouro da música sacra" permanece um testemunho de como a fé pode promover a cultura humana. Cabe-nos então perguntar se a fé só consegue promover a cultura da música sacra e religiosa e não a cultura em geral, ou então, se a música profana, contanto que digna do espaço sagrado, não é também cultura humana; isto aliás no sentido das mesmas afirmações do Concílio que aqui se citam. Esta confusão deriva, em grande parte, do facto de, como tantas outras vezes, se pretender conciliar o inconciliável, se pretender rosas sem espinhos, se pretender o lado cómodo das pessoas e das coisas, mas rejeitar os incómodos decorrentes, ao mesmo tempo que pretendem abordar determinados assuntos as pessoas não devidamente preparadas para o efeito.

    Concluindo, estamos perante um documento um tanto infeliz, muito limitado, precipitado, desenquadrado da realidade com pressupostos localizados, e rapidamente lançado a todo o universo da igreja e, como tal entendido e aplicado sem critério pelos mais rigoristas, mas que, quanto sei, ninguém, com um mínimo de conhecimento de causa, seguiu em qualquer parte do mundo... Num recente documento intitulado "Música e Liturgia, Critérios e orientações pastorais", apresentado como homilia em Quinta-feira Santa e depois publicado em vários órgãos de música e liturgia, mesmo nacionais, o Arcebispo de Braga aborda também esta questão dos concertos nas igrejas; curiosamente limita-se a fazer um simples resumo do n.º 10 deste documento e assume, parece que quase sem dar por isso, a mesma orientação no que respeita aos géneros de música que limita à música sacra. Resultado: ninguém o leva a sério e nem sequer pedem autorização para a realização dos concertos. O facto é que este documento em vez de vir ajudar a resolver os verdadeiros problemas que se colocam aos responsáveis desde os Bispos a todos os que directamente têm que lidar, no terreno, com a gente da cultura, veio colocar mais problemas ainda, com uma linguagem e uma qualidade de argumentos pouco convincentes numa questão que deveria ser efectivamente um espaço de diálogo da Igreja com o mundo, da religião com a cultura e mesmo do espaço sagrado com as verdadeiras formas de nos relacionarmos com Deus.

    Meadela, 22 de Maio de 2002

    Jorge Alves Barbosa