MANUEL FARIA (1916-1983) - TRÍPTICO LITÚRGICO


O Tríptico Litúrgico de Manuel Faria, composto originalmente para órgão (1963) e posteriormente orquestrado, insere-se numa espécie de passagem do autor pela escrita dodecafónica a partir de um curso específico realizado na altura, se bem que encontremos, do ponto de vista da linguagem musical, uma aproximação muito pessoal à mesma, o que aliás acontece em outras obras do mesmo período como as Quatro Pequenas Peças para piano. Aí vislumbramos melhor a relação melódica dos doze sons do que de uma rigorosa aproximação aos cânones deste género de composição novecentista. Efectivamente, o autor nunca se sentiu claramente identificado com o movimento, ainda que me tenha confidenciado que gostaria mesmo de ver realizada a possibilidade de se escrever música dodecafónica para a liturgia e para o povo. É por isso que o vemos sacrificar facilmente às suas intenções expressivas a mais elementar regra da "não repetição de um som antes que toda a série tenha sido ouvida" como acontece logo no comp. 11 do Prelúdio com o si bemol, ao mesmo tempo que o reiterar da fórmula de acompanhamento resulta, por vezes, em efeitos de oitava com a correspondente sensação de vazio como acontece logo no comp. 4 da mesma peça.

Por outro lado, encontramos nesta obra uma curiosa e mesmo surpreendente ligação à grande tradição organística ibérica, quer quanto à forma quer quanto ao estilo. Desse ponto de vista poderíamos enquadrar o Prelúdio na forma e estilo de escrita dos "Tentos de meio registo" de mão direita e de mão esquerda; a Meditação não apenas se poderia relacionar com a forma precedente, mas também evoca a tradição dos "versos", das "elevações" ou outras pequenas formas enquadradas na contemplação tão ao gosto e à mística do compositor; o Final, com a Fantasia, não anda longe do estilo das "Batalhas" embora muito abreviadamente, quer pelo virtuosismo e diálogo de motivos quer pelos acordes reiterados e efeitos de eco que se encontram no final da Fantasia e na última secção da Fuga. Uma outra ligação à tradição organística ibérica encontra-se logo no início do Prelúdio com a utilização, na mão esquerda, de uma forma particular de trilo (o ibérico "redoble") já assinalado e ao gosto de Juan Bermudo em Declaración de instrumentos musicales, (1555) que refere: "um dos mais ilustres instrumentistas de Espanha trilla com dois dedos, contemporaneamente, um na parte superior da nota auxiliar e outro na parte inferior de modo que este "redoble" permaneça sempre com a terceira. Este redoble é agradável ao meu ouvido pela boa harmonia que produz sobretudo quando entra uma voz solista".

Ao nível da estrutura global da obra encontramos alguns elementos que apontam para uma construção cíclica, apesar da variedade de formas relativamente a cada uma das três peças: efectivamente, o tema do Prelúdio assume-se como um "leitmotiv": vai ser o primeiro tema da Fantasia em valores reduzidos a metade, surgirá também na Fuga (c. 109 e seguintes), constitui a base da conclusão em notas longas (c. 140-143) e aparece insinuado por diversas vezes na Meditação (c. 12, 28, etc); os temas em Adagio guardam grandes semelhanças também, ao mesmo tempo que o "trémulo" do c. 30-33 do Prelúdio vai ser repetido exactamente nos c. 32-33 da Fantasia.

1. Prelúdio: Do ponto de vista formal, o Prelúdio apresentaria a forma ABA'C sendo a primeira secção caracterizada pela utilização do tema em versão directa e invertida (c. 5-10) sendo que a passagem do c. 6 se prolonga em trilo (c. 12-15), passando de seguida o tema para a mão esquerda a fim de dar origem a uma espécie de desenvolvimento em progressão (c. 22-25) e em diminuição (c. 26-28) para terminar no redoble prolongado agora em trémulo de acordes (c. 30). A segunda secção, em Adagio, recorda o estilo das "elevações" e apresenta um interessante tema na mão direita, acompanhado por um trémulo de terceiras numa linguagem harmónica próxima da harmonia de tons inteiros (c. 38-39 e 47-48) passando à pedaleira (c. 52-53), findo o qual regressamos ao tema inicial alongado, agora na pedaleira, (c. 56-60) e uma insinuação do acompanhamento de modo a introduzir-nos na terceira secção. Esta secção (c. 64) é uma recapitulação da primeira com o "redoble" de acompanhamento agora "dimezzato" e subindo por tons inteiros na extensão de uma oitava, ao mesmo tempo que o tema vem enriquecido com uma segunda voz e em progressão. É anunciado um terceiro tema (c. 80) dando origem a uma última secção e que não aparecerá antes que tenha sido ouvido ainda o primeiro tema na mão esquerda (c. 86) ao mesmo tempo que o acompanhamento ganha uma nova fisionomia, agora em quintas e com um baixo de valor duplicado. A última secção do Prelúdio (c. 99) apresenta um ar de batalha com acordes rebatidos depois de um crescendo e com elementos do primeiro tema na pedaleira (c. 102-115). O que poderíamos chamar "coda" (c. 115...) apresenta uma síntese, em "stretto", do material anterior, com um enriquecimento progressivo do "redoble" de acompanhamento a partir da pedaleira, passando para a mão esquerda em sextas, acompanhando uma versão ritmicamente alterada do tema da segunda secção para uma última apresentação do tema inicial em valores longos (c. 124) terminando, quase em jeito de retrogradação, com o "redoble bermudiano" na pedaleira...

2. Meditação: A segunda peça do "Tríptico" apresenta uma construção em forma tripartida, mas de contornos mais livres: efectivamente, trata-se de uma espécie de "melodia acompanhada" com acordes que lembram Messiaen (que o autor muito admirava) e onde o tema inicial (c. 7) pode considerar-se constituído por uma parte "a" que vem reexposta adiante (c. 45) e por uma parte "b" (c. 12) que surge depois já como componente de um segundo tema (c. 22) repetido em progressão à 2.ª superior. Esta parte "b" guarda uma relação estreita com o tema principal do Prelúdio, como já dissemos, e aparece com diversificadas fisionomias como o alongamento (c. 35). Ao mesmo tempo há uma relação entre o fragmento do c. 31 e do c. 47, num contraste entre desenvolvimento e simplificação. Uma coda (c. 50) parece insinuar ligeiramente os temas da Fuga ao mesmo tempo que cria uma espécie de "suspense" que introduz a terceira parte.

3. Final: Fantasia e Fuga: A Fantasia, enquanto que breve introdução à grande Fuga, assume-se como uma espécie de recapitulação dos elementos das peças anteriores ao jeito da recapitulação beethoveniana no IV Andamento da Nona antes do "Freunde, nicht dieser Töne!...". Esta Fantasia constrói-se ao estilo de Toccata a partir dos elementos temáticos do Prelúdio, agora em maior velocidade, com valores reduzidos a metade e em progressão ascendente, primeiramente em uníssono e depois em entradas canónicas com pequenos interlúdios à imitação do Adágio. Temos de seguida um novo motivo derivado do primeiro na mão direita a que responde a mão esquerda em inversão continuando o estilo tocatístico que culmina no já conhecido "trémulo" (c. 32) exactamente igual ao do Prelúdio (c. 30); uma sucessão de acordes (quase "clusters") em eco e, acelerando, conduz ao final da Fantasia e início da Fuga.

Não vamos expor aqui com muito pormenor a análise desta Fuga onde a linguagem serial dodecafónica é mais patente e onde a habilidade contrapontística do compositor é bem demonstrada. O "Sujeito" (c.41) aparece ora com o intervalo inicial de terceira ora de quarta ascendente ao mesmo tempo que a "Resposta" (c. 45) é dada também em terceira ou quarta ascendente; de salientar a profusão de "divertimenti" (c. 49, 59, 72, 79, 92). A primeira repercussão assume as características de um primeiro "stretto": S+S (c. 66) e R+R (c. 74); a segunda repercussão apresenta S na segunda forma (c. 83) com a R correspondente (c. 84) também em "stretto" seguindo-se um divertimento que retoma os elementos da Fantasia (c. 92-112). A este segue o verdadeiro "strettissimo" da Fuga com as duas formas de S e de R (c. 113-117) e onde S passa para a pedaleira em valores longos (c. 118) ao mesmo tempo que os manuais apresentam uma versão de S e de R em acordes, num interessante efeito que lembra a parte final da Fantasia; segue-se uma nova "toccata" (c. 126) derivada do tema da Fantasia para desembocar num uníssono, em saltos de quartas e quintas aumentadas e diminutas, preparando uma coda final. Esta coda é constituída pelo tema já recorrente desde o início do Prelúdio, agora em notas longas na pedaleira e como suporte de uma apresentação da cabeça do S em acordes, dando à obra um carácter claramente unitário onde as sete notas iniciais constituem quase um "leitmotiv" que perpassa a obra, do primeiro ao último compasso.

O sentido litúrgico ou espiritual da obra é apresentado pelo seu autor num comentário ao Programa de um concerto em que foi executada a versão orquestral, no âmbito das realizações culturais do Congresso Eucarístico Nacional de Braga em 1974: "São três momentos vividos por uma alma ao atravessar os áditos do templo sagrado, qual fronteira entre o mundo material e a esfera do sobrenatural. Primeiro (Prelúdio) é um esforço de recolhimento sobre o próprio mundo interior, em cujos abismos ecoam recordações de salmos e coros religiosos. Depois (Meditação) é a pura contemplação da divindade presente à "fina ponta da alma" como diziam os místicos. E o (Final) é o cântico da Glória de Deus construído pelo espírito entusiasmado ao contacto interior com o Verbo, e então na atitude de o levar consigo para o mundo, onde de novo se lança para o converter e sacralizar".

Jorge Alves Barbosa

23.04.2002

Ver Manuel Faria