ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA AMIGOS DO ÓRGÃO

Congresso "O Órgão e a Liturgia, Hoje"

Jorge Alves Barbosa, 27 novembro2003

 

CONGRESSO “O ÓRGÃO E A LITURGIA, HOJE”

Fátima, 20-22 de Novembro de 2003

            Um Congresso, pelo significado do próprio conceito é sempre algo de importante, algo que cria naturais expectativas, algo que aparece como um marco no âmbito da discussão de qualquer tema. Falar-se de um Congresso sobre o Órgão, menos de dez anos depois de um realizado sobre o mesmo tema, em Mafra, era algo que soava demasiado bem, ainda que se tratasse agora de algo mais específico – o Órgão e a Liturgia, hoje – e não apenas, como há dez anos, uma visão puramente artística e patrimonial do rei dos instrumentos.

Mas afinal, se é um facto que a organização do Congresso apontava claramente para uma perspectiva preferencialmente litúrgica da questão, quer pelo título específico dado ao evento quer pelo teor das comunicações e conferências propostas, o certo é que a questão da construção dos órgãos, com tudo o que ela envolve de interesses, confessados ou não, veio logo ao de cima numa intervenção claramente despreocupada e descomprometida e com a acutilância e o sentido de provocação tão próprios de Mons. Luciano Guerra, Reitor do Santuário de Fátima e anfitrião do evento em causa: a questão de saber que órgão seria de pensar para a nova Igreja de Fátima dedicada à Santíssima Trindade, exclusivamente destinada ao culto e com uma planta especial, para além do facto de vir a poder albergar umas nove mil pessoas…

            Estava dado o tom para um excelente e promissor Congresso, mas esse tom ou não foi compreendido pelos congressistas – os convidados a intervir – ou depressa se desvaneceu perante todo um conjunto de ideias pré-concebidas, preparadas e controladas a tal ponto que poderíamos perfeitamente ter escutado as conclusões do Congresso mesmo antes de ele ter começado, tal a exiguidade das discussões e mesmo a banalidade de algumas intervenções que desmotivaram quem quer que tivesse algo para dizer a apresentar-se e expor as suas ideias… Arrefecido um pouco o ambiente, regressados aos nossos lugares habituais de actividade, arrumado para um canto do sótão o guião do congresso – pois até havia um guião impresso – eis que é talvez oportuno fazer uma reflexão sobre algo do que lá se passou, sem a pretensão da exaustividade, mas com a serenidade e a perspicácia de quem não deixa passar as coisas em claro. Assim sendo, e salvaguardando as aceitáveis e respeitáveis opiniões em contrário, eis a expressão de uma certa análise e avaliação do acontecimento.

1. Aspectos positivos do Congresso

 

Foi muito positiva a organização e divulgação do mesmo, ainda que marcada ao princípio por um certo secretismo ao que nos pareceu, o que levou a uma ausência inexplicável de muitos organistas e organeiros a operar em Portugal. Foi relevante também o cumprimento dos horários, o que nem sempre acontece nestes eventos, ao mesmo tempo que as instalações proporcionadas e as condições oferecidas pelo Santuário de Fátima eram também de grande qualidade.

A qualidade dos conferencistas convidados constituía um elemento significativamente motivador para uma participação; o mesmo não se pode dizer das intervenções dos mesmos que, na maior parte dos casos se limitaram ao já conhecido, ao material de enciclopédia, à repetição de chavões mais ou menos conhecidos de quem está habituado a estas andanças. Salvaguarda-se porém a excepção de dois ou três casos como as intervenções do Reitor do Santuário pela perspicácia das suas provocações, como referimos já, as intervenções de Felice Reinoldi pela capacidade de análise e conhecimento que revelou de uma questão tão pouco tratada como a do enquadramento histórico do Motu Próprio “Inter Sollicitudines”, a que poderíamos acrescentar a surpresa da intervenção do Prof. Rui Vieira Nery, nomeadamente pela perspicácia com que abordou a questão “arqueologia-mito” no que diz respeito ao papel do Canto Gregoriano e da Polifonia no contexto da liturgia cristã. Tal perspectiva poderia mesmo constituir o princípio hermenêutico que deveria orientar a discussão e mesmo a orientação dos trabalhos, já que estávamos num Congresso; porém, ou não quiseram ou não souberam fazê-lo e perdeu-se uma soberana oportunidade de se discutir o tal “hoje” ou mesmo o “amanhã” da música litúrgica para órgão. Nunca mais ouvi falar do assunto no Congresso, o que me deu pena… Eu também não falei porque quem me quisesse ouvir que me tivesse dado tempo para tal e não em debates que nada tinham disso. Mas adiante…

Foi também positivo o ambiente que permitiu alguma troca de impressões durante os intervalos e mesmo durante as refeições, já que houve a possibilidade de convívio entre todos os participantes; ao mesmo tempo tivemos a oportunidade de estabelecer contactos, conhecer pessoas, trocar impressões que é, normalmente, o que de mais importante se leva dos Congressos. Penso que também foi positiva uma certa desmistificação da ideia do “jovem organista desempregado” que vai grassando por aí como denúncia “interessada” contra os responsáveis da Igreja e particularmente os Bispos. É certo que nem tudo são rosas por parte dos nossos responsáveis hierárquicos, mas é preciso que se saiba também que a Igreja não é uma agência de emprego para meninos ou meninas que descobriram agora um filão que consideravam inexplorado… É que não precisamos só  de organistas, mas de autênticos mestres de capela que saibam e queiram ensaiar, trabalhar e estar presentes nas celebrações, sujeitando-se ao ritmo das assembleias, às limitações dos nossos grupos corais, aos horários das celebrações ainda que sejam às oito da manhã e no interior do país. Que comecem por tocar harmónio ou numa organeta, que um dia poderão chegar a ser organistas de catedral. Ou pensam que antes deles ninguém sabia tocar órgão? 

2. Aspectos negativos do Congresso: 

 

Sem qualquer tipo de ordem ou de prioridades, mas assim ao sabor do teclado, ou como outrora se dizia “corrente calamo”, diria o seguinte: Penso ser altamente negativo o não se ter dado oportunidade aos participantes inscritos de apresentarem comunicações; pela parte que me toca é a primeira vez que me vejo impedido de intervir e, pelo que ouvi dos convidados, não sei em que é que eles estavam mais preparados do que eu para as intervenções que fizeram; as outras intervenções não preparadas que tivemos oportunidade de ouvir ou mesmo de suportar eram inadequadas, deslocadas do contexto, sem qualquer qualidade porque evidentemente não preparadas e mesmo a respeito de alguns que as “prepararam” não percebi o que estavam ali a fazer.

Na minha opinião o tema proposto para o Congresso quase não foi tratado expressamente nem se pode deduzir do elenco das intervenções; falou-se mais do que se faz, e por vezes mal, do que daquilo que se pretende ou se deve fazer, divagando-se como sempre acontece para a problemática mais vasta da música e do canto litúrgico. O próprio desafio do Reitor do Santuário ficou sem resposta, talvez porque não agradou à organização, aos “interesses” presentes ou aos mentores de opinião. As possibilidades de discussão foram limitadas por um exagerado “dirigismo” da organização e da filosofia subjacente, enquanto que algumas das intervenções denunciavam uma escandalosa e descarada sujeição à “cartilha” com relevo para a bibliografia apresentada pelo proposto “jovem organista” no painel do último dia que, na sua ingenuidade, tocou as raias do ridículo. Pensaria que estava a dar uma aula a alunos principiantes?...

No que diz respeito às temáticas desenvolvidas pelas comunicações, penso ser de lamentar a falta de uma referência à arte organística portuguesa quer do passado quer do presente no tocante a música litúrgica para órgão, no mesmo contexto em que foram apresentadas as da Alemanha, França, e do compositor Petr Eben. Não seria difícil fazer-se um trabalho do género e não teria ficado a ideia de que nada existe entre nós. É que nem sequer a antes anunciada intervenção do Prof. Gerhard Doderer sobre a música organística portuguesa nos séc. XVII-XVIII se concretizou. Isto para não falar de outros países que teriam certamente mais interesse para nós, sendo inegável que as comunicações apresentadas se revestiram de inquestionável importância. Poderíamos, pelo menos, apresentar algo do nível e da expressão da que foi apresentada relativamente à Alemanha, já que a França, nesse campo é qualquer coisa de inultrapassável.

Alguns dos intervenientes decepcionaram por completo: o Prof. Franz Stoiber que, pelo lugar ocupado no contexto dos trabalhos, deveria apresentar algo que ultrapassasse a mera informação de qualquer enciclopédia; o Prof. José Luís Uriol que poderia muito bem abordar o assunto da utilização litúrgica do órgão histórico, apontando as dificuldades e sugerindo algo para além do facto de dizer que ele, pessoalmente, não encontrava dificuldades. Será que ele toca nas missas de Domingo num órgão histórico, colocado no coro alto de uma igreja, a dezenas de metros dos cantores, com oitava curta e com afinação mesotónica, os cânticos litúrgicos que se propõem para os dias de hoje e nas tonalidades em que hoje se escreve? Será que ele acompanha coros litúrgicos em órgãos históricos afinados no diapasão 415? Parece que se tratou mais de adequar a liturgia ao órgão do que o órgão à liturgia e suas exigências… Outros limitaram-se a uma reportagem ou relatório sobre experiências que nada de relevante trouxeram ao debate.  

A prometida exposição sobre organaria e o contacto com os fabricantes presentes limitou-se a uma mera exposição de panfletos de publicidade e apenas um projecto; tudo muito pobre para um Congresso Internacional!... Outro aspecto que não foi positivo foi a língua das intervenções; para além da exagerada presença do alemão – quase parecia que estávamos na Alemanha – ao que parece, as traduções não eram de grande qualidade sobretudo pelo facto de os tradutores não conhecerem a especificidade da terminologia em questão; penso que, neste caso, se deveria procurar ao máximo a utilização do português e, caso contrário, optar por uma língua verdadeiramente internacional como o inglês, o francês ou mesmo o castelhano. Mas o alemão!... E neste ponto, uma confissão de mágoa e uma certa raiva: quando o interveniente polaco fez a sua apresentação, num alemão que dava para ver que não era famoso, alguns senhores alemães que estavam na minha frente colocaram os auscultadores de tradução… ao que me foi dado saber depois, para ouvirem a tradução em inglês. Isto é indigno de quem trabalha na e para a Igreja.

Parece que não se deve limitar a discussão de um congresso sobre órgãos à questão de “tubos ou não tubos” como se a questão fosse apenas material. Quer queiram quer não, a questão é de som e não de matéria, e até, como foi dito e bem, é uma questão mais de organistas do que de organeiros. Quando falam das imitações não estarão a esquecer que o próprio órgão não passa de uma tentativa de imitação de outros instrumentos anteriormente existentes? Não é que eu não aceite – não faltava mais nada! – nem compreenda a excelência do órgão de tubos no confronto com outros “órgãos”, eu que quase desde a infância me habituei a respeitar e apreciar este instrumento, mas não façam disso a questão essencial quando se trata da utilização do órgão na liturgia. É que depois, parece que facilmente se transforma a liturgia em palco de concerto quer quanto a repertório quer quanto a formas de execução e a discussão sobre a música de órgão numa discussão sobre competências em organaria.

Outras questões paralelas ou transversais me pareceram também bastante negativas: a passagem apressada, atabalhoada, atarefada, desinteressada, indiferente, para não dizer outras coisas, do Presidente da Comissão Episcopal de Liturgia que só faltou dizer que tinha mais que fazer do que estar a perder tempo connosco porque, nós sim, não temos mesmo mais que fazer… Se ele e os outros Bispos portugueses não se identificam com a questão, ou não se identificam com a organização, ou não se identificam com qualquer coisa que seja que o digam abertamente. Eu também não me identifico com muita coisa que lá se fez, mas estive presente até ao fim. Por outro lado os “liturgistas” convidados e “canudados” não estavam à altura dos acontecimentos; estavam fora do seu campo, não eram as pessoas indicadas para presidir a debates sobre música de órgão e houve até situações caricatas de um que não sabia qual o lado superior de uma partitura… para além do facto de dizer mesmo que não podia fazer o resumo das comunicações porque não era entendido no assunto. Mas porque tinha que ser promovido, foi lá fazer o ridículo.

Outra questão negativa foi a dos Concertos; não pela qualidade técnica das execuções, embora muito discutível na interpretação, sobretudo no que respeita ao Coro da Sé do Porto, mas pelo total desenquadramento da temática, do espaço, e mesmo de um repertório em que, falando-se de órgão, este quase não interveio a não ser numa demasiado discreta intervenção de “contínuo”. Um belo exemplo de como não deve ser elaborado um programa de concerto, pois não basta ter repertório e atirá-lo às pessoas; é preciso que esse repertório tenha uma mensagem a transmitir; e viu-se, até mesmo pela temática das peças, que se tratou de uma autêntica salgalhada… E quanto às celebrações litúrgicas, que dizer do “gregoriano” do Coro Gregoriano de Lisboa? Como é possível tal atropelo à arte, à espiritualidade, à liturgia, a tudo? Não foi só o canto gregoriano que foi ali ofendido, mas fomos nós todos… por gente que não sabe o que é cantar canto gregoriano e muito menos no contexto de uma liturgia. Salvou-se, graças a Deus, pela sobriedade e pela escolha do repertório para o Ordinário da Missa na intervenção do Coro de Santa Maria de Belém. Na celebração de Fátima a inquestionável qualidade do repertório e da performance do coro não foi acompanhada pela adequação ao momento celebrativo; foi pena que não houvesse um único motete a Santa Cecília, nem mesmo do Comum das Virgens ou Mártires; quanto ao momento celebrativo, se bem me lembro, o canto do ofertório foi demasiado longo e o da comunhão demasiado curto… Isto para não falar do “salmo responsorial”… Num Congresso sobre liturgia era de esperar um pouco mais de rigor nesse ponto.

3. “O Órgão na liturgia, hoje”: Algumas propostas

 

Já escrevemos algures que “a dimensão litúrgica da música organística a solo se encontra e se exprime na arte de parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia dos fieis, na gravidade do estilo que caracteriza a música e a sonoridade do órgão, aliados a um sentido de grandeza e solenidade que se foi acentuando progressivamente com o crescimento dos recursos dos instrumentos e com a diversificação das tendências estilísticas e das escolas europeias”.

Ora acontece, e aconteceu particularmente neste Congresso sobre “O Órgão e a Liturgia Hoje”, que, das variadas intervenções, nomeadamente no que diz respeito ao painel sobre a música de órgão na Alemanha, França e República Checa, foi apresentada a música organística aí produzida tendo como ponto de referência o Canto Gregoriano (no caso de alguns autores alemães com particular relevo para Hermann Schroeder, no caso dos autores franceses com particular relevo para Maurice Duruflé e no caso particular de Petr Eben a Sinfonia para Órgão sobre temas gregorianos) ou então tendo como referência os Corais como acontece com os autores alemães J.N. David ou Joseph Ahrens. Pareceu-nos assim mais ou menos assumido que a música litúrgica para órgão se define em função de uma ligação ao Canto Gregoriano ou aos temas de Coral o que é francamente redutor.

Por outro lado, se “a dimensão litúrgica da música organística a solo se encontra e se exprime na arte de parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia dos fieis” hoje em dia as melodias gregorianas não são conhecidas dos fieis e muito menos o são as melodias de Coral no que respeita à maioria das nossas assembleias, salvas as raras excepções de algumas melodias que se popularizaram entre nós como o salmo calvinista “Povo teu somos” ou os Corais “Misteriosa madrugada”, “Senhor meu bom Jesus” e pouco mais… Portanto, por aí não podemos ir longe.

Faltou, por isso, fazer ver esse princípio e adaptá-lo a melodias que entre nós e segundo as diferentes comunidades se foram popularizando e são identificáveis facilmente, mesmo não sendo gregorianas nem de corais bem como a possibilidade de utilizar não melodias gregorianas; seria de apontar, por exemplo, o estilo modal, a técnica preferencialmente contrapontística como recursos que permanecem fortemente ligadas ao ambiente litúrgico e sacro, mesmo quando utilizados em obras de conteúdo profano como acontece na ópera, na sinfonia ou mesmo no quarteto de cordas.

Não se falou muito dos outros aspectos, nomeadamente “a gravidade do estilo que caracteriza a música e a sonoridade do órgão, aliada a um sentido de grandeza e solenidade”; foram esporadicamente nomeados esses aspectos em algumas das intervenções, poderemos dizer que tivemos algumas experiências nesse sentido nas celebrações litúrgicas da Sé de Lisboa e na Basílica de Fátima. Porém, do pondo de vista de uma sistematização ou sequer de uma apresentação de ideias e achegas, nada tivemos de concreto.

Ao mesmo tempo, parece que se limitou a acção do órgão ao acompanhamento e, por isso, se falava das possibilidades de órgãos de reduzidas dimensões. Ora não se poderá fazer muito, nem expressar a grandeza e solenidade de uma celebração com um órgão dotado apenas de registos escuros de 8’ e 4’, instrumento que, pelo contrário, servirá perfeitamente para acompanhamento de um coro ou de uma pequena assembleia. Uma improvisação eficaz sobre uma melodia conhecida não surtirá efeito se não dispusermos de registos solistas. Ou seja, as coisas não são tão simples como parecem. Por isso mesmo apontaríamos algumas ideias que serão outras tantas achegas sobre a questão:

3. 1 – As possibilidades técnicas do instrumento:

 

Como dizíamos anteriormente, a primeira questão a ter em conta são as características técnicas e as possibilidades do instrumento; se queremos um instrumento apenas de acompanhamento de um coro, bastar-nos-ia um simples órgão positivo, mas se pretendemos acompanhar uma assembleia considerável e queremos, por assim dizer, “puxar por ela”, dar-lhe a dimensão de um canto de aclamação como uma Aleluia, criar o clima para um canto de entrada, etc. não poderemos limitar-nos às possibilidades de um pequeno instrumento; ou seja, o carácter de um canto pode e deve ser definido pelo próprio órgão e por isso é necessário que este disponha de algumas possibilidades. Mesmo as simples respostas da assembleia litúrgica exigem um tratamento diferente: por exemplo, o “Ámen” que conclui a oração colecta da missa não é o mesmo “Ámen” que termina a doxologia final da oração eucarística. Para tocar a solo exigem-se algumas possibilidades sobretudo de diálogo de timbres, o que se pode conseguir com a registação diferente em teclados diferentes; um registo de palheta pode ajudar bastante, a possibilidade de uma “sesquiáltera” ajuda também nomeadamente quando se parafraseiam melodias. Não poderemos conseguir grande coisa apenas com um teclado e apenas com os registos fundamentais por muitas que sejam as possibilidades dos mesmos. E muito mais que se poderia dizer…

3.2 – A performance do organista litúrgico

 

É evidente que a eficácia da acção do organista litúrgico não depende apenas de conhecer as melodias gregorianas ou mesmo de saber improvisar sobre as melodias dos cantos propostos para o coro e assembleia. Como já acenámos acima, o simples acompanhamento da assembleia ou do coro implica registações diferentes; mesmo a execução de um Salmo Responsorial pode exigir algo de muito empenhativo neste campo, em função de vários factores: a amplitude do espaço litúrgico desde uma simples capela ao espaço de uma catedral; o tempo litúrgico, nomeadamente a diferença entre Advento e Natal ou entre a Quaresma e Páscoa; o próprio momento celebrativo, desde a gravidade e sobriedade de um acto penitencial ao carácter jubiloso de um Aleluia ou do Sanctus; os participantes na celebração e a sua relação com o espaço: a mesma igreja cheia exige por parte do organista um tratamento diferente do da igreja quase vazia. No que diz respeito à execução e selecção do repertório muito se poderia dizer, mas este deverá ser apresentado em função do tempo de que se dispõe, em função do momento da celebração: não se vai colocar um coral de grandes proporções num ofertório que, por natureza é breve nem se vai executar, num momento de meditação, uma obra de carácter solene, etc.

Um Prelúdio para Órgão pode ter lugar como preparação de uma celebração litúrgica, antes do canto de entrada enquanto que uma Fuga se enquadrará muito bem num final mesmo substituindo o cântico; ou seja, a celebração vem a ser integrada entre o Prelúdio e a Fuga.

Por seu lado, a improvisação deverá obedecer às mesmas regras: uma coisa é um “prelúdio” que propõe e anuncia o carácter de um canto, por exemplo de entrada ou de comunhão; outra coisa é um “interlúdio”, por exemplo nos cânticos de comunhão que pode, além do mais, servir para um certo descanso dos cantores, sem distrair do mesmo cântico ou do que se está a passar e que não deve, por isso mesmo, afastar-se do carácter do mesmo; outra coisa é um “postlúdio”: um postlúdio do canto de entrada, enquanto se faz uma incensação, por exemplo, e com o qual se prepara os fiéis para o início da celebração, é diferente do de um canto de comunhão que acompanha já o silêncio interior dos comungantes e mais ainda do postlúdio de um canto final que constitui a conclusão da celebração que, se tiver sido especialmente festiva, deverá mesmo ser mais exuberante e tocatístico.

3.3 – Integração do Repertório organístico na Liturgia:

 

Já anteriormente nos inserimos nesta questão. Há de facto muito do repertório organístico que pode ser enquadrado em certos momentos da liturgia, alguns dos quais lhe deram mesmo origem: versos, elevações, tocatas frescobaldianas, etc. poderão preencher capazmente alguns momentos como ofertório ou pós-comunhão; da mesma forma que se poderá incluir, num ofertório, um motete solene, também uma obra de carácter preferencialmente contrapontístico e solene, como certas obras românticas. poderá preencher esse momento, nomeadamente quando este se alonga, por exemplo, com incensação. Salvo estas excepções, é de proferir a improvisação sobre um canto verdadeiramente significativo da celebração ou do tempo litúrgico em questão; o repertório deixar-se-á para o “antes” e o “depois” da celebração.

Está fora de questão, como se sabe, a execução de órgão a solo nos tempos de Advento e Quaresma e durante as orações do celebrante. Não sabemos muito sobre o enquadramento litúrgico do repertório ibérico para órgão, mas poderíamos acertar alguns dos Tentos de meio registo em momentos mais tranquilos, alguns dos Tentos mais longos como prelúdios da celebração e não destoaria de certos tempos litúrgicos a execução de uma Batalha como conclusão da celebração, nomeadamente em tempo de Natal ou Páscoa. Mais fácil seria introduzir pequenas peças sobre melodias gregorianas como Versos, nomeadamente aqueles que são elaborados sobre hinos ou outras obras construídas sobre as antífonas marianas: Ave maris Stella, Salve Regina, Ave Maria, etc.

4. O concerto espiritual

 

“Outro facto importante é constituído pela iniciativa dos “concertos espirituais” assim designados porque a música executada pode ser considerada como música religiosa em virtude do tema tratado, do texto que as melodias revestem, do clima no qual as execuções são realizadas. Em certos casos, estes concertos podem incluir leituras, orações ou momentos de silêncio. Em razão da forma que os caracteriza, tais concertos podem ser mesmo designados como “pia exercitia”. É assim que reza o documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino sobre “Concertos nas Igrejas” (n. 2). O “concerto espiritual”, que pode ser elevado à dimensão de para-liturgia, é efectivamente uma das possibilidades de apresentação de muito do repertório organístico de todos os tempos; uma oportunidade, aliás, de lhe dar um enquadramento parecido àquele para o qual foi criado.

Tenho feito, por diversas vezes, essa experiência e, procuro dar mesmo esse carácter aos concertos que faço, como se pode ver pelos respectivos programas, nomeadamente em tempos litúrgicos fortes como Natal, Quaresma e Páscoa, através da escolha de um repertório não só alusivo, mas também apoiado em textos que melhor o façam compreender; para tal contamos com a ajuda preciosa dos Corais e respectivo texto, contamos com a existência de textos bíblicos referentes aos memos temas, um pouco ao jeito de Olivier Messiaen, com os textos de outros cantos litúrgicos ou até de orações. Um contributo fundamental e acessível para esse efeito pode ser dado pelo Orgelbüchlein de Bach, complementado pelos comentários a todos os Corais para Órgão do mesmo autor, feitos por Jacques Chailley em Les Chorals pour Orgue de J.S. Bach ou por muitas outras obras sobre música de órgão. A este repertório poder-se-á acrescentar outro do género das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau ou mesmo a perspectiva moralizante das Batalhas ibéricas, para não falarmos já na dimensão teológico-trinitária do Prelúdio e Tripla Fuga de Bach…Esse mesmo repertório poderá ser enquadrado por outro, não especificamente de temática religiosa ou litúrgica, mas que lhe pode servir de suporte: Prelúdios, Tocatas, Fantasias e Fugas, etc.

Os recursos do repertório organístico de temática religiosa são imensos, pelo que se exige uma grande dose de bom gosto na respectiva selecção: não estou a ver um concerto dedicado à Paixão de Cristo a começar com uma Tocata de Bach, mas já poderá começar com alguns dos Prelúdios de Bach, Buxtehude ou outro… Da mesma forma não entenderia que um organista apresentasse, num concerto em tempo de Natal, as Variações “Weinen Klagen” de Liszt, ou os Corais da Paixão de Bach, como não entenderia a apresentação de La Nativité du Seigneur de Messiaen ou uma Pastorale num concerto durante a Quaresma.

No entanto eu já assisti a algo muito pior que isso… Este é um dos aspectos em que a dimensão pedagógica dos concertos de órgão, particularmente nas nossas igrejas, muito poderá ser valorizada, para o que deverão ser formados não só os organistas como os próprios responsáveis pela programação dos concertos. Para um melhor aproveitamento nesse sentido, muito poderão ajudar as notas de comentário a colocar no programa de mão, para além dos textos que informam as peças de dimensão mais litúrgica, textos esses que, em muitos casos, poderão, com considerável proveito, ser lidos durante o concerto. Para além do mais, isso dará tempo para o executante registar a próxima peça ou mesmo para respirar um pouco…

Com uma atenção particular a estes pormenores, poder-se-á valorizar infinitamente o simples concerto de órgão e respeitar aquele carácter de gravidade e respeito que a própria Igreja pretende ver guardado nos espaços sagrados, tal como vem referido no documento já citado. Estas ideias poderão servir ainda como orientação na escolha do repertório a preparar por parte dos organistas, pois, para além da fruição artística e do desenvolvimento técnico que são sempre importantes para um instrumentista, no momento de escolher e preparar novo repertório, o mais importante é preparar material que possa, um dia, ter utilidade para outros, seja no contexto de uma celebração litúrgica seja num concerto realizado no espaço sagrado.

Meadela, 27 de Novembro de 2003

Jorge Alves Barbosa

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