Associação Portuguesa Os corais para órgão, de César Framk
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O ÓRGÃO NA LITURGIA CRISTÃ
A REGISTAÇÃO DO ÓRGÃO LITÚRGICO
CONGRESSO “O ÓRGÃO E A LITURGIA, HOJE”
Jorge Alves Barbosa

OS CORAIS PARA ÓRGÃO

 

DE CÉSAR FRANCK

 

“Como se tivesse consciência do fim que se aproximava, César Franck compôs, aos sessenta e oito anos, em Nemours, os Três Corais para Órgão, nos quais transborda toda a sua fé profunda, elevando-os à altura de um verdadeiro testamento musical e espiritual”.[1] Estamos efectivamente em presença de um testamento, na medida em que esta trilogia não só representa um resumo de toda a obra que o autor legou para a posteridade - constituindo mesmo a sua obra derradeira, composta no verão de 1890, uns meses antes de morrer[2] -  mas define também uma herança que haveria de orientar os compositores das gerações seguintes no caminho de uma verdadeira renovação da literatura para órgão. Trata-se também de uma afirmação de fé, em primeiro lugar, na Santíssima Trindade,[3] já que não estamos simplesmente em presença de três corais, como se pudessem ser dois ou trinta, a exemplo de outros compositores que compuseram corais para órgão; estamos em presença de uma autêntica “trilogia” em que as relações de continuidade e de contraste, as relações de proximidade estrutural, as relações com a restante música para órgão nos revelam um sentido de unidade verdadeiramente impressionante. Uma afirmação de fé pelo estado de elevação e quase de arrebatamento extático que a sua audição provoca, pois, como dizia alguém, “quase não nos deixam respirar”, tal é a densidade harmónica e o sentido de liberdade rítmica ali presente bem como uma constante “presença-ausência” dos seus elementos temáticos. São, ao mesmo tempo, a expressão de uma vida: uma vida eventualmente marcada pelo sofrimento[4], pela inquietação de quem conheceu não poucas desilusões e incompreensões e pela procura constante da sobrevivência económica, do reconhecimento dos seus méritos, da compreensão  do sentido e valor da sua obra, mas uma vida que também teve a consolação de encontrar quase tudo aquilo por que efectivamente lutou; já no final da vida pôde deixar sair do coração a frase: “Vá lá, eis que o público me começa a compreender”. São também a expressão de um sentido de tranquilidade, de felicidade e serenidade que nos revela aquele César Franck já projectado para a eternidade onde pensava “acabar os seus projectos, se Deus o deixasse”, ideia que poderíamos eventualmente descortinar na conclusão da obra, com aquele acorde de Lá Maior em posição de terceira no agudo…  

“Antes de morrer hei-de escrever corais para órgão como fez Johann Sebastian Bach, mas noutro plano” – dizia César Franck; depois de uma vida de grande actividade como organista improvisador, depois de uma obra considerável, mesmo falando na literatura escrita para órgão; faltava-lhe dizer uma última palavra, mas “noutro plano”. O “Coral” como forma musical organística fora abordado de diversas maneiras por quase todos os organistas do passado e mesmo pelos contemporâneos de Franck, nomeadamente no mundo germânico como é o caso Johannes Brahms ou Max Reger, mas nunca se afastando da temática do “coral tradicional luterano” e dentro das formas do Prelúdio Coral[5] ou da Fantasia Coral ou mesmo da Sonata como fizera Félix Mendelssohn-Bartholdy. Não sendo uma forma habitualmente presente na música organística francesa, mesmo em compositores prolíficos como Saint-Saëns, César Franck, assume o Coral como algo de totalmente novo, no material – não se baseia nos corais protestantes - na concepção, na estrutura e mesmo nas proporções; estamos efectivamente noutro plano. Assim, no Primeiro Coral, recolhe o legado da variação beethoveniana, através de uma delicada transformação dos temas que quase nunca se chegam a definir verdadeiramente, aliada a uma densidade cromática tão subtilmente elaborada que quase escapa ao ouvido, apesar de demasiado evidente na leitura; no Segundo Coral temos um tributo à música barroca através da utilização do contraponto e da forma tradicional da Passacaglia e Fuga numa linguagem extremamente delicada e onde o cromatismo apenas aflora no que seria o verdadeiro Coral, já em si revelador do lirismo presente em outras obras do autor;  no Terceiro Coral temos uma homenagem directa a Bach e ao Prelúdio em Lá menor – e, indirecta à técnica violinística vivaldiana - temos um apelo à dimensão marcadamente tocatística de tanta música de órgão e particularmente daquela que se afirmava mais popular no seu tempo e ainda um tributo à forma sonata em três andamentos; trata-se além do mais, de uma obra em que, mesmo assim, o “Coral” propriamente dito surge de forma mais evidente. É neste Coral que encontramos talvez um dos momentos mais altos do lirismo franckiano: aquele maravilhoso Adagio da parte central.

Dentro do que poderíamos apresentar ainda como elementos comuns aos Três Corais para Órgão seria importante salientar o processo compositivo e a dimensão estrutural das obras; é mais ou menos comum acentuar a estrutura cíclica presente nas obras do autor e particularmente nos Corais, mas iríamos mais longe, ainda que utilizando uma linguagem um tanto simplista, talvez; poderíamos dizer que os corais de Franck se vão compondo a partir de elementos extremamente simples, quase como um processo invertido de variação, na medida em que a variação parece surgir antes do tema propriamente dito: são elementos que se vão ajuntando, organizando como peças de um puzzle que, não denunciando à partida qualquer imagem, nos deixam surpreendidos ao final com o resultado obtido. Do ponto de vista da estrutura, encontramos nos Corais de Franck algo de muito original a que poderíamos chamar “estrutura concêntrica”: de facto, tudo converge para uma secção central onde os diferentes elementos que vão surgindo ao longo da obra se conjugam e entrelaçam num complicado e extremamente bem elaborado processo de construção. Assinalaremos essa secção central em cada um dos Corais, mas poderemos dizer, desde já que parece assistirmos a um processo de composição mais ou menos assim: Franck elabora os temas, organiza as ideias em ordem à construção dessa secção central e depois, como que dando-se conta da sua riqueza, explora cada um deles e apresenta-o, antes como preparação e depois como resultante… Do ponto de vista das proporções da obra, não encontramos paralelo em toda a literatura organística anterior ou mesmo posterior: trata-se de obras que rondam os quinze minutos de duração e uma extensão que vai dos 199 compassos do terceiro aos 289 do segundo

 1. Primeiro Coral, em Mi Maior:

“Verão que o verdadeiro coral não é aquilo que se pensa – diria Franck a Vincent d’Indy -  vai-se fazendo no decurso da obra”. Este Primeiro Coral articula-se em quatro secções com solução de continuidade: uma primeira secção introdutória vai apresentando alguns dos elementos constitutivos em pequenas frases (1-46) até que surge aquilo que poderia ser o “coral” propriamente dito; segue-se um conjunto de variações sobre os elementos da primeira secção (65-86) até que volta a surgir o coral. Uma terceira secção inicia-se com um tema novo apresentado por meio de uma “transição”[6] em Dó maior (106-170), tema esse que vai também ser desenvolvido intercalado com nova apresentação de fragmentos da secção inicial até chegarmos à “secção central” com a sobreposição do tema do “coral” em menor e dos temas desta terceira secção (170-205). Aqui situamos o ponto fulcral da obra, apesar da aparente simplicidade, em virtude da relação próxima entre os dois temas que se conjugam em contraponto invertido. Uma quarta secção (206259) reintroduz o tema inicial agora não variado, mas fragmentado e reduzido em “stretto” numa progressão cromática que conduz à última aparição do coral na tonalidade principal. Uma pequeníssima coda (255-259) é constituída pela citação reiterada do início das variações o que, recordando o motivo inicial, confirma a estrutura concêntrica da obra.[7]

2. Segundo Coral, em Si menor:

  O Segundo Coral constrói-se numa estrutura mais acessível à compreensão mesmo numa linguagem harmónica mais simples se a compararmos com a densidade do anterior; a secção central da obra encontra-se na apresentação do coral (195-210): aí, o coral propriamente dito é sustentado, na pedaleira, pelo tema que será o elemento base da secção inicial “passacaglia” e da “fuga”. Assim sendo, e como já se disse anteriormente, este coral desenvolve-se dentro da forma da Passacaglia e Fuga com o Coral muito claro em secções intermédias; ao mesmo tempo notamos o contraste entre uma linguagem predominantemente diatónica da Passacaglia e da Fuga e uma linguagem mais cromática do Coral. A secção inicial (1-64) é constituída pela Passacaglia, com a apresentação do tema ora na pedaleira ora na parte aguda dos manuais; surge então o Coral (65-126) em diferentes secções entremeadas com passagens em estilo de “recitativo” e em progressão modulante. A cadência final do Coral, com a relação maior-menor, faz lembrar algumas passagens de outras obras do autor, nomeadamente o Cantabile e Pièce Héroïque na mesma tonalidade.

Uma secção de recitativo “teatral”, em estilo livre e com fantasia, onde aparece uma citação do Coral, conduz-nos à Fuga: (148-194) o sujeito é o mesmo tema da Passacaglia, apresentado de imediato com um “contra-sujeito”, mas na tonalidade afastada de Sol menor e numa exposição normal; uma passagem com o CS em “stretto” conduz-nos à repercussão do tema no VI grau (Mi bemol) depois do que aparece o Coral na tonalidade de Mi bemol menor e Fá sustenido menor (195-225) mas agora com o tema principal por base, constituindo aquilo a que chamamos “secção central”. A uma passagem modulante e “fantasista” derivada do CS da fuga (226-246) segue-se uma nova apresentação da segunda secção do Coral conduzindo à última aparição do tema em acordes com o CS na pedaleira; o tema passa depois para a pedaleira e o CS para a mão esquerda, confiando-se à mão direita o acorde da tonalidade inicial num contraste com o mesmo acorde com a quanta alterada; esta levará a uma última apresentação da terceira secção do Coral, numa conclusão extremamente suave e serena apresentada pelas “vozes celestes” e com uma cadência assinalada pela presença do CS da Fuga.

O acorde final em Si Maior – descrito pelos comentadores com palavras como tranquilidade, serenidade, recolhimento ou êxtase – é marcado por um pequeno motivo na pedaleira que, pouco ou nada tendo a ver com o resto da obra, não deixa de ser curioso e significativo: várias vezes assinalámos o contraste entre a modalidade maior-menor, apontámos o contraste entre a linguagem diatónica e cromática, assinalámos a dimensão dramática dos próprios recitativos; agora, depois desta luta “luz-trevas” encontramos finalmente a luz na brilhante tonalidade de Si Maior, à semelhança do que acontece no Cantabile e Pièce Héroïque. Não admira, pois, que Franck nos brinde agora com a subtileza de um motivo que não é mais que a citação da oratória A Criação de Haydn, na passagem em que o texto diz: “…Und Gott sah das Licht” (…e Deus viu a luz)…

3. Terceiro Coral, em Lá menor

O Terceiro Coral constitui um tributo à sonata em três andamentos, uma homenagem à música organística de Bach e à música litúrgica tradicional católica com a utilização da modalidade antiga; três andamentos contrastantes e perfeitamente identificados na estrutura global da obra: Quasi allegro – Adágio – Andamento inicial. O elemento gerador central, tal como nos outros corais, encontra-se na sobreposição do tema do Adágio e do tema do Coral, (117-126) se bem que o mesmo Coral venha a ser também sobreposto ao tema da tocata no terceiro andamento.

O tema A é uma citação do Preludio em Lá menor de Bach apresentado em jeito de tocata (1-14) seguida de uma ponte modulante (15-30) constituída por um conjunto de acordes que dão entrada ao tema B (30-47) que constitui o Coral propriamente dito em modo “deuterus” ou “frígio”. Segue-se uma reexposição com nova entrada de A na tonalidade de Mi menor (48-56), seguida novamente da ponte modulante e do tema B de características modais, mas com uma cadência em Lá menor (56-79). Nova apresentação do tema inicial com um pequeno desenvolvimento e novamente a ponte modulante (80-96) que conduz agora directamente ao segundo andamento.

O segundo andamento – Adágio – desenvolve-se no modo “dórico” ou “protus” em Fá sustenido (96-116), mesmo que inicie na tonalidade de Lá maior (pela harmonização) e com um ataque por meio da apogiatura da terceira (prolongamento da sétima da Dominante); trata-se de uma melodia de rara beleza, profusamente modulante, até concluir em Lá maior, dando entrada ao Coral (117-127), agora apresentado nesta tonalidade, ao qual se sobrepõe novamente o tema do Adágio (a parte central e mais construída da obra). Terminada a apresentação do Coral, um fragmento do tema deste andamento, em desenvolvimento modulante, conduz a um conjunto de sucessivas entradas do mesmo tema, agora em “stretto”, (130-146) a partir da tonalidade de Ré bemol. Esta prepara nova entrada do Coral que, em “fortíssimo”, prepara a entrada do terceiro andamento.

Este andamento (147-199) volta ao estilo tocatístico, em movimento vivo, mantendo-se depois da entrada do Coral que se vai sobrepondo de diversas formas a uma espécie de movimento perpétuo da própria tocata; só na parte final com a última frase do Coral (190-194) desaparece o elemento tocatístico para dar lugar a uma secção de acordes “como que os contrafortes desta catedral sonora” conduzindo a uma cadência bem definida (193-194), embora bastante cromática (IV alterado - II alterado - V-I). Uma coda construída com os elementos da ponte modulante do primeiro andamento, sob pedal superior da tónica (194-199), conduz à cadência final plagal – mais uma evocação do repertório litúrgico tradicional – com o acorde final maior (picarda) na posição de terceira, o que provoca aquela sensação de projecção para o alto de que falámos anteriormente.   

 

“Os Três Corais para Órgão resumem a aspiração de uma alma em relação à claridade da paz divina e à felicidade celeste” e, por isso, eles são portadores daquela dimensão ecuménica que transforma um género nascido e criado em ambiente claramente protestante numa das expressões mais eminentes da literatura organística do mundo católico e nascida da pena de um fervoroso crente. Ao mesmo tempo César Franck soube transfigurar verdadeiramente as formas musicais do passado, oferecendo-lhes uma nova linguagem e tornando-as portadoras de novas possibilidades no campo da criação musical; por meio desta transfiguração, Franck exprime claramente o verdadeiro sentido e o dinamismo da tradição, e aponta caminhos aos compositores e organistas do futuro como se pôde ver pelo renascimento e expansão da música francesa para órgão por todo o século XX; ele soube também transfigurar a linguagem harmónica conferindo um sentido quase místico à sensualidade que dimanava das harmonias cromáticas da música wagneriana. Nos Três Corais para Órgão encontramos um autor amadurecido, portador de uma nobreza e austeridade de linguagem organística já purificada daquela superficialidade característica da obra do autores e instrumentistas do seu tempo – Lefébure-Wély, Alkan, etc. -  e ainda presente em obras anteriores suas como Finale ou Pièce Héroïque, e purificada mesmo de algumas influências da música de piano como acontecia nas suas primeiras obras, particularmente na Grande Pièce Symphonique. Aqui se revelam também novas possibilidades conferidas ao órgão pelas técnicas mais recentes da construção organária, por uma paleta tímbrica incomparavelmente mais rica e por uma concepção orquestral da música organística que confere ao elemento tímbrico uma posição fundamental na própria estrutura da obra.

Uma palavra final sobre a registação da obra de Franck e particularmente dos Três Corais: são claras e precisas as indicações que o autor nos fornece no respeitante à registação da sua obra, mas já não é tão claro o que efectivamente ele pretende.

 Para tal, haverá que ter em conta as características particulares do órgão da Igreja de Santa Clotilde, sobretudo na suavidade das palhetas e na sonoridade particular da Voz Humana; por isso mesmo, nem em todos os instrumentos poderemos seguir as indicações do autor, sobretudo no que respeita à utilização de Oboés e Trompetes que na maior parte dos casos resultam demasiado agressivos, e também a sonoridade particular dos jogos de Fundos nomeadamente no que respeita à utilização ou não das Misturas.

O importante será compreender e transmitir o ambiente de serenidade e de espiritualidade que as obras pretendem e um grande sentido do equilíbrio sonoro e de bom gosto.[8]


[1]  JEAN GALLOIS, “Franck, um inovador”, in Enciclopédia Salvat dos Grandes Compositores, Vol. 4, p. 204.

[2] Franck compôs os Três Corais entre Agosto e Setembro de 1890, vindo a falecer em 8 de Novembro do mesmo ano. Nunca os chegaria a ouvir como obra integral e consta que, já muito debilitado, ainda se deslocou a Santa Clotilde para preparar as registações.

[3] Uma imagem sempre presente como expressão da fé de César Franck e que ele exprime de diversas formas na sua vida e obra, nomeadamente pelo processo dialéctico de tese-antítese-sintese com que estrutura as suas obras.

 

[4] Recordava-nos o organista italiano Giancarlo Parodi a afirmação de alguém segundo a qual era preciso ter sofrido muito na vida para compreender e interpretar bem a obra de César Franck…

 

[5] Franck escreveu, curiosamente, um Prelúdio, Coral e Fuga para piano, de elaboração totalmente própria, uma das obras mais marcantes do autor e da literatura romântica para piano.

 

[6] Chama-se “transição” ao processo de modulação rápida a tons afastados que consiste em tomar a nota mais aguda de um acorde e utilizá-la para como nota mais aguda de outro acorde; no caso, a nota “mi” que é fundamental da tonalidade de Mi maior e se torna a terceira de Dó maior.

 

[7] Uma análise, muito mais pormenorizada e um pouco diferente na concepção, se pode encontrar por exemplo em FRANÇOIS SABATIER, César Franck et l’Orgue, Ed. Que sais-je?, P.U.F. Paris, 1982, p. 87, de onde retirámos também algumas das ideias aqui expostas.

 

[8] Poderemos encontrar algumas notas importantes sobre a registação das obras de Franck e mesmo das diferentes tendências surgidas a este respeito em GIUSEPPE RADOLE, Le Registrazioni Organistiche nelle Culture Europee, dal 1500 al 2000, Ed. Pizzicato, Udine, 2001, p. 208-217.


 

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