Associação Portuguesa AUDIÇÕES DE PRIMEIRA
Amigos do Órgão

Jornal Público - 2004mar02

Coro Gulbenkian

dir: maestro Jorge Matta

 org: Rui Paiva

Grande Auditório da FCGulbenkian
28Fev2004, 19:00
Sala a cerca de metade da lotação
Manuel Pedro Ferreira,

Jornal Público, Crítica Musical, 02mar04, pg47


   A revelação de um riquíssimo cancioneiro inédito e de obras maiores de Francisco António de Almeida

     O Coro Gulbenkian pela mão do seu maestro assistene, Jorge Matta,  veio revelar-nos neste concerto, em primeira audição moderna, algumas obras inéditas dos séculos XVII e XVIII, todas de apurada factura, que surpreenderam ora pela novidade histórica, ora pela impressionante qualidade estética.

Na primeira parte do espectáculo, foram apresentadas cinco peças do Cancioneiro Anónimo da Biblioteca da Ajuda (sé. XVII), que é por vezes referenciado no âmbito da História da Música Espanhola, mas tem sido, inexplicavelmente, ignorado pela musicologia portuguesa. Trata-se de um repertório  de canções estróficas com refrão intercalar, geralmente em língua castelhana, que se insere na moda  do "novo romance cortês ibérico", cultivado nos dois primeiros terços de seiscentos. O estilo musical deste tipo de canção polifónica é muito semelhante ao do Vilancico contemporâneo, mas a textura não ultrapassa as três ou quatro vozes, e a forma resume-se ao esquema AB, AB, etc. (em que B é um refrão coralmente denso e relativamente extenso).

Das 130 obras anónimas incluídas neste Cancioneiro, pudemos ouvir cinco, das quais as duas primeiras, "Picola una abeja a Filis" e  "Retratar oy la niña", são especialmente interessantes na sua variedade e vivacidade, e a última,  "Ya las sombras de la noche", marcante no carácter contemplativo e na subtileza de escrita, próxima do motete latino da época.

A recriação das partituras, para três vozes e baixo contínuo (distintamente realizado por Rui Paiva ao órgão e Kenneth Frazer na viola de gamba), tirou partido da possibilidade de confiar certas passagens ou repetições, às flautas de bisel de Pedro Couto Soares e Pedro Sousa e Silva, que foram inexcedíveis em afinação, fraseio e gosto ornamental.

Entre os cantores (em número algo excessivo para este repertório), destacaram-se a soprano Mónica Santos e o tenor Sérgio Peixoto.

A segunda parte do programa foi integralmente dedicada a obras de Francisco António de Almeida, que floresceu no segundo quartel  de setecentos, no reinado de D. João V. O "Responsório a 4 concertato", para a festa de Santo António, "Si quaeris miracula", com o seu curioso refrão, e o salmo "Miserere mei, Deus", que parece dispensar o "Gloria patri" final, remetem-nos para um contexto de exaltação religiosa dissociado da prática litúrgica tradicional, lembrando-nos a função emblemática, no período barroco, do espectáculo sacro. Estas obras juntamente com o motete "Justus ut palma", para o "Comum de um Mártir", e a "Primeira Lamentação do Sábado Santo", confirmaram a rara pujança artística do compositor, bem servido por uma direcção sintonizada com estilo e atenta às virtualidades expressivas de cada partitura.

O Coro Gulbenkian esteve aqui no seu melhor, devendo ser feita menção, pela positiva, aos solos da soprano Marisa Figueira e da meio-soprano Michèle Roland.

Manuel Pedro Ferreira


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