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HARMONIZAÇÃO DE CÂNTICOS LITÚRGICOS

António José Marques de Sá Mota Setembro 2001  - 1/9 

 

O presente artigo trata da harmonização de cânticos litúrgicos ao órgão. Não pretende ser um tratado de harmonia nem de contraponto (longe disso!). Pretende simplesmente mostrar que, contrariando as primeiras impressões que muitas melodias litúrgicas causam, é sempre possível evitar-se cair em harmonizações banais (que infelizmente proliferam no meio) e encontrar uma solução criativa.

Recorrendo a 5 exemplos concretos, ilustrar-se-ão “regras” de boa prática na harmonização de melodias litúrgicas. Claro que tais “regras” traduzem as ideias particulares do autor deste artigo em relação a este assunto, não devendo ser encaradas como algo de absoluto, pois, como se sabe, são possíveis uma multiplicidade de soluções aquando da harmonização de uma dada melodia (sendo algumas soluções mais felizes que outras…).

É suposto que o leitor tenha conhecimentos de harmonia e contraponto para compreensão dos textos.

Procurará em vão o leitor neste artigo harmonizações inovadoras ou revolucionárias! É opção do autor manter sempre um espírito “clássico”, no sentido das harmonizações reflectirem claramente um estilo barroco ou neo-barroco. Ou então fazem uso duma linguagem mais modal. Com efeito (e porque os exemplos de harmonizações que veremos não são de todo meros exercícios de harmonia, mas pretendem ser de aplicação prática ao organista na liturgia), o acompanhamento litúrgico impõe certos princípios de simplicidade e sobriedade, o que nem por isso constitui obstáculo à criatividade. Por outro lado, porque se opta por harmonizar a 4 vozes, não se encontrarão acordes mais complexos do que tríades de 7ª e 9ª.

Em termos de notações, nos exemplos de harmonizações indicar-se-ão cifras de acordes1 e/ou análise funcional2 dos acordes na tonalidade/modo em causa. Mas são meros auxílios, pois recomenda-se que o processo de harmonização não passe a priori por um pensamento em termos de progressões harmónicas, mas antes por um pensamento que assente na lógica de condução e encaminhamento melódico das vozes. Claro que, na prática, harmonia (progressões harmónicas) e contraponto (encaminhamento melódico) são indissociáveis.


1 Da imensa variedade de notações existentes para cifrar acordes, escolheu-se a usada na música Jazz, por estar muito difundida, e por ser lógica e praticamente auto-explicativa (por exemplo C indica o acorde de dó maior, A-7 indica o acorde de lá menor com sétima menor, Dsus4 indica ré com quarta suspensa (retardo de terceira), etc.).

2 Notação usada em várias escolas de música (por exemplo, no IGL e ESML), usando numerais romanos por baixo dos acordes para indicar graus da escala (por exemplo, vi a indicar o sexto grau), em minúsculas ou maiúsculas consoante o acorde é menor ou maior. Letras minúsculas após o numeral romano indicam inversões (a é o estado fundamental (atributo por omissão), b a primeira inversão, etc.).


Passando à prática, a visão do autor sobre esta problemática da harmonização, aqui particularizada a cânticos litúrgicos, assenta em 2 pontos fundamentais ou “regras”:

· contraponto entre o Soprano (melodia) e a linha do Baixo: a linha melódica do baixo deve dar primazia aos graus conjuntos, em movimento contrário com o Soprano, respeitando as regras tradicionais do contraponto sobre a sucessão de intervalos consonantes e dissonantes e suas resoluções; saltos no Baixo devem ser reservados para progressões tipo ii-V-I (caso de tonalidade maior), e suas variantes (IV-V-I, ii/IV-V-vi), ou na cadência plagal (IV-I), nos momentos cadenciais que o texto e/ou características da melodia sugerirem (por exemplo no final do cântico ou aquando de mudança de frases), ou então aquando de afirmações da tonalidade (como por exemplo no princípio do cântico); como “efeito colateral” desta prática, as relações intervalares entre Soprano e Baixo irão praticamente determinar as harmonias;

· ritmo harmónico: dos tempos fracos do compasso para os fortes (2 para o 1 num 2/4, ou 2 para 3 e 4 para 1 num 4/4, ou 3 para 1 num 3/4, etc.) devem-se usar sempre encadeamentos fortes de acordes, que se definem como sendo aqueles em que mudam pelo menos 2 notas de acorde para acorde; dos tempos fortes para fracos podem ser usados qualquer tipo de encadeamentos fracos ou fortes, ou poderá mesmo não existir ritmo harmónico (poderá por exemplo haver apenas mudança de inversão do acorde).

Claro que estas “regras” não podem ser cegas. Poderíamos escrever um contraponto “perfeito” dum Baixo em relação a uma melodia dada, mas isso per si não seria garantia de uma boa harmonização final. Paralelamente, uma escolha arbitrária de encadeamentos harmónicos fortes também daria resultados duvidosos. É preciso ouvir para estar por dentro dos estilos, enfim, conhecer certos gestos e referências. Não esquecer a velha máxima “primeiro imitar depois inovar”! E claro que se deve ter também presente outras regras elementares de harmonia e condução melódica3.


3 Não fazer oitavas paralelas, e evitar as quintas, entre qualquer par de vozes. Entre vozes consecutivas, evitar um intervalo superior à oitava, excepção feita entre o tenor e o baixo. Evitar cruzamentos entre vozes, excepto se o contraponto justificar. Dar primazia ao movimento de grau conjunto versus saltos, em todas as vozes. A sensível da tonalidade deve resolver ascendentemente por grau conjunto. As dissonâncias (7ª, retardos, etc.) devem resolver descendentemente. A sensível e dissonâncias podem ser resolvidas por outra voz (excepto sensível no Soprano ou Baixo, ou dissonâncias no Baixo), mas sempre por grau conjunto e na mesma oitava, salvo resoluções pelo Baixo. A duplicar terceiras nos acordes (acto que tende a enfraquecer a sua sonoridade), prepará-las por grau conjunto, tal como no caso das dissonâncias. Evitar acordes de 2ª inversão (excepto 2ª inversão cadencial), a nãoser que se saiba usá-las! Etc.!


Dos 5 exemplos práticos que se apresentam nas próximas secções, os 3 primeiros tratam de melodias tonais, enquanto que os últimos exemplos são hinos gregorianos, modais, portanto.

Exemplo 1: “Enviai, Senhor, o Vosso Espírito” (autor desconhecido)

Trata-se dum cântico de Crismação. A estrutura é típica: refrão (a ser cantada pelo povo) quese alterna com um recitativo (cantado por um solista), aplicado a vários textos:

As características da melodia do refrão são as típicas dos cânticos litúrgicos: (i) sugerem mudanças harmónicas de tempo a tempo ou de 2 em 2 tempos e (ii) têm poucas ou nenhumas alterações cromáticas, sugerindo aparentemente apenas uma tonalidade, e parecendo contrariar quaisquer possibilidades de modulação. No presente caso, o refrão é de carácter nitidamente tonal, mas já o recitativo, sugere um contexto mais modal, situação também normal.

Uma solução de harmonização da melodia do refrão poderá ser a que se apresenta de seguida:

Notas:

· “regras” do contraponto e ritmo harmónico respeitadas! o Baixo desenvolve-se sempre por grau conjunto, e predominantemente em movimento contrário com o Soprano, excepto na separação de frases (4º para 5º compasso) e na cadência perfeita final, onde salta; dos tempos fracos para fortes do compasso, os encadeamentos são sempre fortes;

· começo em oitava/uníssono é boa política em cânticos litúrgicos, até do ponto de vista prático (para o povo “apanhar o tom”);

· retardos de terceira nos compassos 3 e 4 contrabalançam diminuição de ritmo harmónico;

· é boa prática mais movimento de vozes (a sugerir também duplicação do ritmo harmónico) na cadência final (mais geralmente, dos tempo fracos para os tempos fortes do compasso).

Notar que nem a cifragem de acordes nem a análise funcional explica o que se passa em termos de contraponto no primeiro compasso, ou no último tempo do penúltimo compasso. Dito de outro modo, mesmo respeitando as harmonias, uma má distribuição e encaminhamento das vozes pode se revelar catastrófica! Estas indicações são, pois, apresentadas apenas como meros auxílios, devendo-nos concentrar na lógica da condução melódica das vozes (em particular as extremas) e no critério de encadeamento de acordes (as tais “regras”).

Uma segunda possibilidade de harmonização deste refrão poderá ser a seguinte:

Notas:

· o começo (2 primeiros compassos) faz-se a apenas 3 vozes, por as vozes se encontrarem numa tessitura muito serrada;

· cadência plagal a marcar fim da primeira frase, fazendo ouvir pela primeira vez a tonalidade principal (ré maior), dando ênfase à palavra “Espírito”.

Quanto à harmonização dos recitativos, aconselha-se uma abordagem muito prática da questão: para evitar que o organista se veja forçado a seguir o texto que o solista recita, para prever a cadência, faz-se com que a harmonia da corda de recitação funcione também para a primeira nota da cadência (ou mais notas)! Evita-se assim também um excesso de ritmo harmónico que é prejudicial à sincronização entre organista e solista. Uma possibilidade de harmonização do recitativo do cântico “Enviai, Senhor, o Vosso Espírito” poderá ser a seguinte:

Notas:

· inicia-se no relativo menor da tonalidade (neste caso sem terceira), uma “boa” relação tonal

com a tonalidade principal, não levantando problemas de afinação ao cantor solista.

 

Exemplo 2: “Cantai ao Senhor um Cântico Novo” (P. Ferreira dos Santos)

Trata-se de um Salmo Responsorial, constituído por um refrão e um recitativo. O refrão, de que trataremos, apresenta características claramente tonais, tal como o anterior exemplo:

Este refrão, muito mais que o exemplo 1, é paradigmático das dificuldades que se apresentam ao harmonizador de cânticos litúrgicos em evitar cair em repetição de acordes e progressões, que conduz invariavelmente a resultados pouco interessantes e desinspirados. Por exemplo, os primeiros compassos parecem polarizar irremediavelmente o acorde de sol maior, e de seguida parecem seguir-se 4 compassos na dominante. Concentremo-nos antes em obter um bom contraponto entre Baixo e melodia, que o resto virá quase automaticamente! Uma solução será:

Notas:

· o Baixo desenvolve-se sempre por grau conjunto, excepto na separação da primeira para a segunda frase (e na cadência final, claro)!

· o fim da primeira frase é marcado claramente por um apoio na dominante da tonalidade; e da escolha do acorde seguinte, na partida para a segunda frase, resulta uma sonoridade algo modal (gesto plagal tipo IV-i), marcando ainda melhor a transição;

· o final da segunda frase é marcado não através duma cadência explícita (por causa da proximidade da cadência final) mas antes por uma estranheza harmónica: modo menor do acorde de dominante, que funciona como iv grau numa progressão iv-V-i, considerando uma modulação passageira a lá menor (ii grau de sol maior, relativo da subdominante);

· o acorde de primeiro grau surge por 2 vezes com a terceira duplicada (ver cadência da primeira frase e cadência final), mas notar como ambas as terceiras são preparadas por grau conjunto, e notar também que, no primeiro caso, o acorde funciona como apojectura do seguinte (“passa rápido”) e, na cadência final, o acorde está colorido com a 9ª, que “desvia a atenção” do ouvido, por assim dizer;

· a duplicação da terceira no acorde de vi grau com 7ª (no 1º compasso) pode ser encarada com naturalidade, não carecendo preparação, por se tratar da duplicação do grau mais importante da tonalidade (sol), e também dada a presença da 7ª;

· no fim do 2º compasso, temos um acorde de 7ª da dominante na segunda inversão sem 3ª, situação só possível dada a boa lógica de encaminhamento das vozes e dado o facto da tessitura se encontrar cerrada (confinada à oitava); também no 4º compasso do 2º sistema observamos um acorde sem 7ª na segunda inversão, sendo a situação mais normal quando há 7ª; mais uma vez, só um bom contraponto e distribuição de vozes justifica a situação;

· outros “erros” aparentes: (i) no 2º compasso do 2º sistema parece haver quintas paralelas entre Soprano e Alto, mas o si no Soprano é apojectura para o dó; paralelamente, (ii) do 3º para o 4º compasso, as quintas paralelas entre o Baixo e Tenor são justificáveis contrapontisticamente, porque o fá no Tenor é nota de passagem; notar que (iii) neste ponto faz-se ouvir um acorde de iii grau com 7ª no Soprano, sendo essa 7ª resolvida no compasso seguinte pelo Alto, através de um salto, e sendo que essa nota de resolução é por sua vez outra 7ª de outro acorde, que foi preparada no compasso anterior pelo Soprano (não subestimar a capacidade de memória do ouvido!); (iv) no 1º compasso do 2º sistema o Soprano apanha uma nona de um acorde através de salto, mas essa nona foi preparada por uníssono pelo Alto;

Exemplo 3: “O Filho do Homem” (P. Ferreira dos Santos)

Cântico composto por uma antífona, refrão e versículos. Apenas o refrão não foi harmonizado pelo compositor, sendo que as outras secções são harmonizadas de um modo relativamente clássico, e sem fugir à tonalidade de ré maior. Dadas as suas características, conseguir uma harmonização interessante do refrão não é de todo trivial:

Com efeito, os compassos 2 a 4 sugerem um certo marasmo harmónico. Contra estes indícios, só um bom contraponto de vozes pode ajudar! Por outro lado, é importante observar que não há apoios na tónica nem na dominante, nem gestos tonais típicos (como, no exemplo 1, o salto dominante ® tónica do início, ou a descida por graus conjuntos até à tónica, no fim do exemplo 2, etc.). Ora isto à partida aponta para a necessidade de uma harmonização mais de carácter modal. Uma possibilidade de harmonização deste refrão é a seguinte:

Notas:

· o acorde inicial poderá não parecer simples de “agarrar” pelos cantores, mas na prática, pelo facto da nota do Baixo ter sempre um efeito muito forte, ele tende a assimilar-se como um acorde de dominante da tonalidade com uma sexta agregada;

· fez-se a análise harmónica como estando em ré maior, mas na verdade esta tonalidade não é afirmada claramente vez alguma; é apenas sugerida no apoio na dominante no 2º compasso, e na cadência interrompida final; os compassos intermédios sugerem a tonalidade relativa menor, dada a alternância dos acordes si menor e mi menor, num gesto plagal;

· alguns “erros” aparentes: (i) no compasso 4, a 7ª do acorde de dominante (no Soprano) parece não resolver, mas de facto é resolvida pelo Baixo no compasso seguinte; (ii) no compasso 6, a 7ª na melodia não é preparada por grau conjunto, mas as características de contorno melódico justificam a situação; (iii) no compasso 8, a 7ª no Soprano não resolve imediatamente, mas apenas 1 tempo mais tarde, situação tornada possível também por se tratar de uma progressão harmónica muito forte (ciclos de quintas) e por os acordes estarem enriquecidos com sétimas; (iv) no compasso 5, a dada altura desaparece a 3ª do acorde, mas é óbvio que ela permanece na memória do ouvinte, sendo ainda a situação justifica pelo contraponto das vozes;

· a duplicação de terceiras é mais usada no acorde de vi grau, por daí resultar uma duplicação da tónica da tonalidade; mas, por extensão, também um acorde sobre o terceiro grau admite facilmente uma duplicação de terceira, por se estar a duplicar o quinto grau da tonalidade, um grau também importante, situação que se observa no compasso 8;

· “regras” do contraponto e ritmo harmónico continuam a ser respeitadas!

Finalizada esta secção relativa a harmonizações de cânticos litúrgicos de características tonais, trataremos de seguida das harmonizações modais, através de 2 exemplos.

Exemplo 4: “Ave Maria” (Hino Gregoriano)

Pode-se dizer que uma harmonização em estilo modal é necessária em 2 situações: (i) para hinos gregorianos, ou melodias baseadas em hinos gregorianos e (ii) para cânticos “normais” (no sentido de estarem enquadrados pela lógica do ritmo tonal e dos compassos) cuja melodia não apresenta gestos tonais típicos (sensíveis a subir, apoios na dominante, saltos dominante « tónica, etc.) Este último caso já foi aflorado no anterior exemplo 4. As “regras” a usar são as mesmas das melodias tonais, apenas se tem de banir a cadência V-I, excepto se for com acordes menores (v-i), fazendo mais uso do movimento plagal menor (iv-i) e sobretudo do equivalente à cadência tonal interrompida (movimento V-vi ou IV-V-vi).

Já para o caso dos hinos gregorianos, ou melodias baseadas em hinos gregorianos, é preciso compreender a seguinte característica fundamental: a ausência total de significado dos compassos! Nas boas transcrições de gregoriano para notação moderna, as barras dos compassos obedecem à lógica das frases do texto, enquanto que noutras transcrições menos rigorosas os critérios poderão ser muito pouco lógicos, quiçá bizarros. Em qualquer dos casos, o que se tem de reter é que na música gregoriana a palavra é soberana, e determina tudo.

Passando à prática, continuam para os hinos gregorianos a ser válidas as “regras” de harmonização que o autor deste artigo recomendou, mas com algumas adaptações:

· “regra” do contraponto: o Baixo e melodia (Soprano) devem continuar a ter concordância, mas em geral o contraponto é menos importante, sobretudo nas vozes intermédias, onde até não chocará encontrarmos quintas paralelas (não oitavas); é que a filosofia por detrás do acompanhamento de hinos gregorianos deve ser a de estabelecer um pano de fundo harmónico que apoie os melismas melódicos e o texto, nunca tirando protagonismo à melodia, antes criando uma atmosfera;

· “regra” do ritmo harmónico: quanto menos mudança harmónica houver melhor! claro que cadências e respirações do texto devem ser sempre devidamente marcadas; mas noutros casos é boa prática escolher acordes que funcionem para várias notas do texto (e para isso, muita ajuda pensar notas como apojecturas para outras); tem-se assim o tal pano de fundo harmónico discreto, mas para que seja eficaz, recomenda-se sempre encadeamentos fortes; quanto ao critério da mudança harmónica, nunca contrariar o acento tónico das palavras e, claro, nunca quebrar uma sílaba; a situação de cadência pode, no entanto, abrir excepções.

Apresenta-se de seguida uma transcrição para notação moderna do hino gregoriano “Ave Maria”. Notar que as barras de compasso a tracejado assinalam as vírgulas no texto, enquanto que as barras duplas assinalam os pontos, a separação de frases do texto, portanto.

Esta transcrição não está transposta em relação ao gregoriano original, porque a armação de clave não tem acidentes (visto de um modo mais rigoroso: porque a única nota da melodia que parece alterada é a “nota móvel” gregoriana, si). O modo gregoriano sugerido pela melodia é o prótus em ré (critério da nota final), na sua extensão autêntica. Assim, os acordes a usar na harmonização serão construídos sobre graus da escala menor natural de ré (ou modo eólio em ré, para usar a terminologia modal moderna). Mas notar que no início da segunda frase há temporariamente uma mudança de final, ré para lá, ao mesmo tempo que a nota móvel si passa de bemol a bequadro, implicando, pois, o modo lá eólio. Uma solução de harmonização deste hino será a seguinte:

Notas:

· harmonização a 3 vozes, excepto apenas na cadência final;

· uso frequente de acordes sem terceira no último acorde das cadências, o que confere aos acordes e à harmonização uma sonoridade bem ao estilo modal;

· notar harmonias que duram o máximo de tempo possível, como no 1º compasso do 3º sistema; mas não se leva esta ideia ao exagero, para não se perder fluidez harmónica e plasticidade musical; o ritmo harmónico tende a aumentar nas cadências, podendo aí haver situações de uma harmonia por cada sílaba;

· mudança harmónica nas sílabas tónicas, não quebrando a musicalidade natural da palavra;

· cadências ao 5º grau: VI-v (compasso 2), iv-v (compasso 8);

· cadências ao 1º grau: iv-i (compasso 5), VII-i (compasso 4), VI-VII-i (compasso 7 e 9).

 

Exemplo 5: “Mandai, Senhor, o Vosso Espírito” (P. Manuel Luís)

Como último exemplo, tomemos o Salmo Responsorial “Mandai, Senhor, o Vosso Espírito” do P. Manuel Luís, cujo refrão é baseado na primeira e última frase do conhecido hino gregoriano “Veni Creator” (notar a irrelevância de colocação das barras de compasso):

Uma possibilidade de harmonização deste refrão será a seguinte:

Notas:

· harmonização que vive de um certo paralelismo de vozes, que causa também paralelismo harmónico; o ritmo harmónico é mais elevado que no anterior 4;

· harmonias mais complexas (acordes enriquecidos com sétimas e nonas, simplificando-se a cor harmónica apenas em momentos cadenciais, na frase intermédia e frase final);

· no antepenúltimo e penúltimo compasso, sétimas que não resolvem tradicionalmente (i.e. descendentemente) mas que resolvem noutra sétimas (progressão de acordes paralelos).

Quanto à harmonização da parte de recitativo, uma possibilidade será a seguinte:

Conclusões

O presente artigo tratou de alguns exemplos de harmonizações ao órgão de cânticos litúrgicos, tonais e modais, destilando desses exemplos algumas “regras” que o autor julga serem boa prática - claro que as harmonizações apresentadas não disfarçam uma certa influência de Maurice Duruflé… Os cânticos litúrgicos apresentam um conjunto de características particulares que não os tornam tão simples de harmonizar como se poderia pensar à primeira vista, sobretudo quando se quer resultados interessantes. Espera-se numa futura continuação deste artigo trazer outros exemplos e pôr à discussão outros problemas não aqui retratados.

( António José Marques de Sá Mota )

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